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Luvemba e a Ancestralidade

Hoje é dia primeiro de janeiro de 2018. O último dia de Kwanzaa, quando se celebra Imani. Fé. Honrar os ancestrais, as tradições e os líderes africanos do passado sobre as adversidades do presente. 

Hoje reverencio e honro a este ancestral chamado Bunseki Fu-Kiau, que tem me ensinado outra maneira de perceber e viver o mundo, através de seus escritos, que revelam os fundamentos filosóficos do povo Bakongo. 

Há dois anos minha família vem passando por contínuos ciclos de morte. Para mim o fato mais marcante que vivi neste último ano foi estar de mãos dadas com minha Avó no exato momento em que ela fez sua passagem para as terras de Mpemba Kalunga, as raízes da grande árvore, a terra dos ncestrais.

Devo cá dizer que essa caminhada de aprofundamento nas bases da Filosofia Bakongo tem me ajudado a lidar com estas experiências de morte de uma maneira profunda e transformadora. Vou com estes ensinamentos desprendendo-me das mazelas do pensamento cartesiano cristão que fui obrigada a engolir na infância e na adolescência, que condenou tantas famílias (inclusive à minha própria), entre outras coisas, a encarar a morte com sofrimento e apego.

Como honrar os ancestrais? Como fazer de nossa própria existência testemunho vivo da luta e dos ensinamentos dos ancestrais que fizeram e ainda fazem a diferença na construção da história de nosso povo e poder somar efetivamente para a transformação de nossa realidade biológica, física, pessoal, social, política?

Quando tocamos o entedimento de que nossa ancestralidade fazemos em vida, através de nossas ações, como este ano me lembrou o amigo e pensador Sérgio São Bernardo (SSA), quando alcançamos este entendimento e assumimos este entendimento em experiência e ação, em movimento, nossa vida se transforma e fica mais fácil caminhar para a transformação e a evolução. Nem que seja no seu próprio interior.

A cada novo dia somos convidados a caminhar, nascer e renascer, porque somos banhados pela luz do sol, que serve como reflexo de nossa mais profunda essência. 

Cada fim é convite para um recomeço. Certa feita ouvi de Mestre Cobra Mansa essa pergunta: "Como você quer ser lembrando quando cruzar a Linha de Kalunga?"


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Uma Linha Reta, N'longa - lukongolo      |      Um círculo Vazio, Mbungi
...

Para os Bakongo, no princípio dos tempos só existia o Vazio, Mbungi - uma linha reta com um círculo no meio, o Universo Sem Vida Nem Forma. 

No entanto, onde existe o Vazio e o Nada sempre atuam Forças Desconhecidas e Invisíveis (kwena mwasi ye mpamba kweti sala ngolo zankaza zazimbwa)... 

E foi Assim que, do Ventre deste grande Nada chamado Mbungi, manifestou-se a chispa do fogo da Kalunga, uma força completa por si só, que soprou para cima e para baixo uma tempestade de projéteis de Fogo (kimbwandènde), produzindo uma enorme massa em fusão (Luku lwalâmba Nzâmbi), que explodiu em vários corpos celestes. (FU KIAU, 1969)


deste grande Nada chamado Mbungi manifestou-se a chispa do fogo da Kalunga
Uma destas massas de fogo se resfriou e se solidificou, dando origem à Terra, gerando água, rios, montanhas e, finalmente, os seres viventes.


O mundo (nza) converteu-se em uma realidade física, flutuando nas águas da Kalunga, metade na vida terrestre, metade submergendo-se na vida submarina e no mundo espiritual. 

É muito lindo perceber que, ainda que associada às águas líquidas do grande Oceano, a força da Kalunga também está conectada à explosão do Fogo Primordial que emerge de Mbungi, o círculo vazio, existente antes da criação do universo. 

Como a vida no cosmos passa a acontecer a partir deste momento, acredita-se que a Kalunga seja a fonte da vida original, a força da imensidão, geradora de todos os movimentos e de todos os seres vivos que estão em movimento. 

Por ter sido a força motriz do primeiro movimento dentro de Mbungi, Kalunga é a Vida em sua plenitude, matriz de todas as coisas viventes, que estão em perpétuo movimento.

São os movimentos da Kalunga - os fluxos de suas águas e o calor de seu fogo - que dividem o Diekenga (a mandala bakongo onde estão representados os ciclos da existência do universo) em duas partes iguais e espelhadas, como uma montanha refletida nas águas de um rio. 

Ao nascer, o Muntu (o ser humano, o sol vivo) cruza a "Linha de Kalunga", saindo de Ku Mpemba (o mundo imaterial dos ancestrais, onde o corpo é preparado para existir na matéria) para despontar em Ku Nseke (o mundo físico). 

Diekenga, a mandala da existência para os Bakongo, atravessa quatro ciclos, que correspondem aos movimentos do Sol: 

.Mussoni (etapa inicial invisível, momento de fecundação e concepção);
.Kala (o amanhecer do sol, momento inicial visível, o nascimento);
.Tukula (a trajetória de crescimento do sol, que culmina no ponto chamado Tukula, o auge de seu amadurecimento); 
.Luvemba (momento de maior transformação do sol, a sua morte).

Diekenga, o cosmograma bakongo
Assim, ao ser concebido, o Muntu (o ser humano) passa a existir no ponto Mussoni, o ciclo da fecundação, quando suas impressões digitais são deixadas em seus dedos. 

Despontar para a vida física e social em Kala trás a marca da fala e da escuta, já que é nesta etapa que o ser aprende a ouvir (WA) e a falar, realizando sua missão no plano terrestre, que é aprender. 

"Para os Bantu, especialmente os Congo, viver é um processo emocional, de movimento. Viver é movimentar, e movimentar é aprender". (Fu Ki-Au, 1997)

O Muntu deve mover-se ao longo da Linha de Kalunga para aprender. Aprender dentro da floresta, em contato com a natureza, aprender na comunidade. Se o Muntu não aprende, torna-se enfraquecido e impotente.

Assim como o próprio Muntu, a comunidade também se movimenta ao longo da linha de Kalunga. Então, a Kalunga conecta todas as relações da comunidade e serve de suporte para os processos (dingo dingo) de aprendizagem do Muntu.

Tukula, o ponto da maturidade, exige do Muntu e de qualquer ser vivente ou ciclo cósmico, social ou natural, que seja usada ao máximo a força deste momento-potência para a ação extrema, assim que aquele que não souber aproveitar desta força madura está fadado ao fracasso e ao esquecimento, porque depois de Tukula, vem Luvemba. 

E Luvemba é o ponto onde o Muntu (o Sol Vivo) passa por sua maior transformação e vive o declínio e a Morte, voltando a cruzar a Linha de Kalunga. 

Luvemba.

Na mitologia Bakongo conta-se que é em Luvemba (o quarto e último ciclo do Diekenga), que Maghûngu passa a existir em nosso planeta. 

Um ser andrógino, macho e fêmea, que passa por eras caminhando errante pela Terra, até o momento em que é dividido em dois seres: Lumbu e Muzita (fêmea e macho). 

Conta-se que, para manter a unidade de quando eram um só ser, Lumbu e Muzita decidem permanecer juntos durante a vida e tornam-se marido e mulher. (Fu-Kiau, 1969)

É muito interessante essa maneira de perceber os ciclos da Vida Morte Vida, muito interessante que seja em Luvemba (o ciclo da Morte) que surja o ser humano no Planeta Terra ... E muito lógico, também, já que quando o Muntu nasce, trás consigo o signo da Morte. 


Depois de fazer uma volta completa pelos ciclos que estão em Ku Nseke (o Mundo Material), ao cruzar novamente a linha de Kalunga, o Muntu volta a pisar no Mundo dos Ancestrais ...

Segundo Fu Ki-Au, para os Bantu a Morte não é o fim, porque a Morte é um processo como qualquer outro e por ser um processo, os Bantu vêem a Morte como Música. Assim, nascemos e morremos sob Música, porque dentro de nós temos uma percussão que é o nosso Coração.

Na Vida, nos diz este grande ancestral, "Você precisa encontrar (conhecer) as pessoas vivas e as pessoas mortas. Esse conceito não é muito conhecido no Ocidente e por isso que o Ocidente não entendeu muito bem a cultura africana. Nós aprendemos mais com os mortos do que com os vivos. Isto é muito comum dentro do povo africano. Isto é ilustrado na maneira como os africanos respeitam os mortos. E é verdade também... mas eles não enxergam, não percebem nessa (ordem). Se você for em qualquer livraria, você vai ver mais livros escritos por mortos do que escritos por vivos. E os bantu falam: nós escutamos e aprendemos mais dos mortos. É por isso que os bantu falam: escutem mais os mortos que os vivos, porque os mortos se tornaram pedras, e os vivos são capim. Eles podem ser facilmente pisados, enquanto os mortos, que são pedras, não podem ser destruídos tão facilmente. (Fu-Kiau, 1997)

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Mo Maiê, Mariana, Janeiro de 2018
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Fontes:
Fu-Kiau, K. K. B. (1991). Self Healing Power and Therapy: Old Teachings From Africa. 
Fu-Kiau, K. K. B. (1994). Ntangu-Tandu-Kolo: The Bantu-Kongo Concepts of Time. In J. Adjaye (Ed.), Time in the Black Experience (pp. 17-34). Westport, CT: Greenwood Press.
Fu-Kiau, K. K. B. (1969). Tying the Spiritual Knot: African Cosmology of the Bantu Kongo. Principles of Life and Living. 
Fu-Kiau, K. K. B. e  A.M. Lukondo-Wamba  (2000) . Kindezi. The Kongo Art of BabySitting
Palestra do Dr. Fu Ki-Au (Salvador, 1997): capoeira e Cultura Ancestral Bantu

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