Pular para o conteúdo principal

A poética da Cabaça



olhar: não é ver . ouvir: não é escutar.

ao passo que refinamos nossos sentidos, adentramos num mergulho sinestésico na natureza mais profunda das coisas do universo.

Cabaça. Este nome (que em árabe - kara bassasa - quer dizer "abóbora lustrosa") designa uma das primeiras plantas a serem cultivadas no mundo, não apenas para uso alimentar, como para uso  doméstico, culinário e também espiritual. 

À primeira vista uma cabaça pode não te dizer nada. Mas para muitas cosmovisões afrikanas e indígenas, a cabaça tem significados reveladores e metafísicos sobre a própria existência humana.

Na mitologia yorubana a cabaça está presente em Ytans de mais diversos orixás, sendo associado à Oduduá, às Ya Mis, a Obaluaê, a Nanã, a Orumilá, a Exu ...

Aqui uma lenda yorubá chamada Igbadu (A Cabaça da Existência), belíssimo texto de Adilson de Oxalá:

(...) Devo lembrar-te de que, se hoje és detentor do poder sobre os 16 destinos, deves a mim este privilégio, ou por acaso te esqueceste da forma como adquiriste este poder? perguntou Exú.
Mais calmo, aceitando a meia cabaça de água que lhe estendia seu interlocutor, Orumilá acomodou-se sobre uma esteira estendida no chão e se pôs a lembrar daquilo que Exú estava se referindo.
... Desde muito jovem, Orumilá ansiava pelo saber e foi informado de que, para obtê-lo, deveria conquistar os favores de uma musa chamada Sabedoria, que se encontrava encarcerada em algum lugar na imensidão do Orun.
... Partiu sozinho, numa aventura cujas consequências não podia avaliar. De concreto, sabia apenas que muitos outros já haviam partido com a mesma intenção e que jamais haviam retornado.
... Depois de já haver caminhado por dias, encontrou um mendigo que, estendendo-lhe a mão pediu um pouco de comida.
Metendo a mão em seu embornal, dele retirou um pouco de farinha de inhame e, de uma pequena cabaça que levava na cintura, um pouco de dendê, misturando tudo e dividindo com o mendigo, comendo, ele mesmo, uma pequena parte do alimento.
Depois de alimentar-se, o mendigo, sem revelar seu nome, ofereceu ao jovem, em sinal de agradecimento, o bastão de marfim entalhado, dizendo - Bem sei o motivo pelo qual penetraste nesta floresta. Segue somente tua intuição, deixa-te guiar pela vontade de vencer e, em breve, irás deparar-te com uma enorme construção de pedra na qual entrarás com muita facilidade. Os perigos com os quais irás te defrontar estão em seu interior, portanto preste a atenção no que agora vou te dizer. Com este bastão de marfim, denominado Irofá deverás bater em cada uma das portas dos 16 quartos, pois só assim elas abrirão. Do interior de cada porta ouvirás uma voz que te perguntará: "Quem bate?" e tu te identificarás, dizendo que és Ifá, O Senhor do Irofa. 
A voz lhe perguntará então o que estás procurando, e tu dirás, estando longe da porta do primeiro quarto, que desejas conhecer a vida e que queres conquistá-la em nome de EJIOGBÉ. A porta então se abrirá e conhecerás os mistérios da vida que pertencem a Ejiogbe, o primeiro dos 16 Odus de Ifá.
No segundo... depois de haveres te identificado como da forma anterior, dirás que desejas conhecer IKU, a Morte e que desejas dominá-lo. A porta se abrirá e conhecerás a Morte, seus horrores e mistérios, que pertencem a Oveku Meji, o segundo Odu de Ifá. Se não demonstrares medo em sua presença, haverás de adquirir domínio absoluto sobre ele ...
Na terceira porta encontrarás um guardião denominado Iwori Meji, que depois de reverenciado, te colocará diante dos olhos e mistérios da vida espiritual e dos nove Oruns, onde habitam os Deuses, demônios e todas as classes de espíritos que irás conhecer de forma íntima, descobrindo seus gostos e maneira correta de apaziguá-los.
Na quarta porta, reclamarás por conhecer o jugo da matéria sobre o espírito, e o guardião desta porta, ODI MEJI, a quem deverás mostrar respeito e submissão, te ensinará tudo o que for concernente a questão, é necessário que não te deixes encantar pelas maravilhas e pelos prazeres que se descortinarão diante dos teus olhos, pois podem escravizar-te para sempre, interrompendo a tua busca. Lembra-te ainda que a matéria que sequer foi criada dominará o universo.
Já na quinta porta, quando fores indagado, dirás que procuras pelo domínio do homem pelos seus semelhantes, pelo uso da força e da violência, da tortura, do derramamento de sangue. Aprenda tudo que Irosumen Meji ... tem para te ensinar. Mas não utilizes as técnicas ali reveladas, para não te tornares, tu mesmo, vítima delas. Aí tomarás conhecimento dos planos de Olorun em relação à criação de um ser dotado de corpo material.
Na sexta porta ... um gigante do sexo feminino te saudarás pelo nome de Oworin Meji, e a quem solicitarás ensinamentos relativos ao equilíbrio que deve existir no Universo, e então compreenderás o valor da Vida e a necessidade da Morte. O mistério que envolve a existência das montanhas e das rochas. Ali serás tentado pela possibilidade de obter riquezas, mulheres, filhos e bens inenarráveis. Resiste a essas tentações ou verás tua vida reduzida a uns poucos dias de luxúria.
Diante da sétima porta. O habitante deste quarto chama-se OBARA MEJI, é velho e de aparência bonachona. Poderá te ensinar prodígios de cura e soluções para seus problemas mais intrincados. Dará a ti a possibilidade de realizar todos os anseios e os desejos de realizações humanas. Toma cuidado, no entanto, pois os domínios destes conhecimentos pode conduzir-te à prática da mentira, à falta de escrúpulos e à loucura total
No oitavo aposento deverás solicitar permissão a OKARAN MEJI para conheceres o poder da fala Humana, que infelizmente será sempre muito mais usada na prática do Mal do que do Bem. Este guardião te falarás em muitas línguas e de sua boca só ouvirás  queixas e lamentações. Aprende depressa e foge deste local, onde impera a falsidade e a traição.
Diante da nona ... guardião OGUNDÁ MEJI, para conheceres a corrupção e a decadência, que podem levar o ser humano aos mais baixos níveis da existência. Naquele quarto, conhecerás todos os vícios que assolarão a humanidade e que a escravizarão em correntes inquebrantáveis. Verás o assassinato, a ganância, a traição, a violência, a covardia e a miséria humana, brincando de mãos dadas, com muitos infelizes que se tornaram seus servidores.
No décimo aposento, deverás apresentar reverências a uma poderosa feiticeira, cujo nome é OSÁ MEJI. Ela vai ensinar-te o poder que a mulher exerce sobre o homem e o porquê deste poder. Conhecerás seres portentosos que funcionam na prática do Mal. Todos os demônios denominados Ajés se curvarão diante de ti e te oferecerão seus serviços maléficos que, caso aceites, farão de ti o ser mais poderoso e odiado sobre a face da Terra. Aprenderás a dominar o Fogo e a utilizar o poder dos atros sobre o que acontece no Mundo, principalmente a influência da Lua sobre os seres vivos. Cuida para que estes conhecimentos não te transformem num bruxo maldito.
Na décima primeira porta, seu guardião IKÁ MEJI, o gigante em forma de serpente, te fará estremecer. Saúda-o respeitosamente e solicita dele permissão para descortinar o mistério que envolve a reencarnação, o domínio sobre os espíritos ABIKU, que nascerão para morrer imediatamente. Aprende a dominar estes espíritos e, desta forma, poderás livrar muitas famílias do luto e da dor.
A décima segunda ... seu guardião se chama OTURUKPON MEJI, é do sexo feminino e possui forma arredondada, mais se parecendo com uma bola de carne. Poderá revelar-te todos os segredos que envolvem a criação da terra, além de ensinar-te como obter riquezas impensáveis. Aprende com ele o segredo da gestação humana e a maneira de como evitar abortos e partos prematuros.
Décima terceira, bate com cuidado e respeito. Neste aposento reside um gigante que costuma comunicar-se ... com a Deusa da criação do mundo. Aprende agora como é possível separar as coisas. Domina o mistério de dissociar os átomos, adquirindo assim, pleno poder sobre  a matéria. Aprende também a utilizar a força mágica que existirá nos sons da fala humana, mas usa esta força terrível com muita sabedoria. Este gigante chama-se OTURA MEJI.
Décima quarta porta, irás defrontar-se com IRETE MEJI, que nada mais é que o Ilê, a Terra. Faz com que te revele os seus mais íntimos segredos. Agrada-o, presta-lhe permanentemente reverência e sacrifício. Contata por seu intermédio, os espíritos da terra e transforma-os em seus aliados. Conhece os segredos de Sakpata, o Vodu da peste que mata e cura da forma que melhor lhe aprouver. Aprende com ele o poder da cura, já que matar é tão mais fácil.
Na décima quinta, serás recepcionado por Ose Meji, que irá falar-te de degeneração, decomposição, putrefação, doenças e perdas. Aprende a sanar estes males e sai dali o mais depressa possível, para não seres também vitimado por tanta negatividade, que foi gerada em uma relação incestuosa.
Finalmente, a décima sexta porta ... Aí reside OFUN MEJI, o mais velho e terrível dos 16 gênios guardiões. Saúda com terror gritando Hêpa Babá! Só assim poderás aplacar sua ira. Contempla-o com respeito, mas não o encares de frente. Observa que ele não é um gênio como os que conhecestes nas 15 portas que precediam esta. Este é OFUN MEJI, aquele que gerou os demais, que nele habitam e que dele se dissociam apenas de forma ilusória. Conhecê-lo é conhecer todo o Segredo do Universo. É isto que buscava, Oh Orumilá! Domina e resgata para ti a bela donzela chamada Sabedoria!


FONTES:
Livro Igbadu, a Cabaça da Existência, de Adilson de Oxalá

https://angicoesuaslendas.blogspot.com.br/2016/03/cabaca.html
http://asombradosobreiro.blogspot.com.br/2013/11/lenda-da-cabaca-dos-bijagos.html
http://filhosdeantoniotosun.blogspot.com.br/2011/08/lendas-de-igbadu-cabaca-da-existencia.html
https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/86937/bastos_mab_me_ia.pdf?sequence=1
https://angicoesuaslendas.blogspot.com.br/2017/01/beneficios-cabaca.html
https://www.editoraareiadourada.com.br/produto/as-cabacas-do-akpalo-autor-josue-g-de-araujo-edmagazine-gibi.html

https://conexaoafrica.com/page/2/

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Guedra - O ritual das mulheres do "Povo Azul"

Guedra A palavra "Guedra" quer dizer "caldeirão" e também "aquela que faz ritual". Guedra é usado para nomear um ritual de transe do "Povo Azul" do deserto do Saara, que se estende desde a Mauritânia passando pelo Marrocos, até o Egito. Através da dança e da ritualística que a envolve, esse povo traça místicos símbolos espalhando amor e paz, agradecendo a terra, água, ar e fogo, abençoando todos os presentes entre pessoas e espíritos, com movimentos muito antigos e simbólicos. É uma dança ritual que, como o Zaar, tem a finalidade de afastar as doenças, o cansaço e os maus espíritos. Guedra é uma dança sagrada do "Povo do Véu" ou "Kel Tagilmus", conhecido como "Tuareg. Em árabe, "Guedra" é Também o nome de um pote para cozinhar, ou caldeirão, que os nômades carregam com eles por onde vão. Este pote recebia um revestimento de pele de animal, que o transformava em tambor. Somente as mulheres dançam "G

Os Quatro Ciclos do Dikenga

Dikenga Este texto sobre os ciclos do Cosmograma Bakongo Nasce da Essência da compreensão de mundo dos que falam uma dentre as línguas do tronco Níger-Kongo, em especial Do Povo Bakongo.  Na década de 90 o grande pensador congolês chamado Bunseki Fu Ki.Au veio  ao Brasil trazendo através de suas palavras e presença as bases cosmogônicas de seu povo, pensamentos que por muitos séculos foram extraviados ou escondidos por causa da colonização da África e das Américas e dos movimentos do tráfico negreiro. Fu Ki.Au veio nos ensinar filosofia da raíz de um dos principais povos que participaram da formação do povo brasileiro, devido aos fluxos da Diáspora. Transatlântica. Segundo Fu Ki.Au, “Kongo” refere-se a um grupo cultural, linguístico e histórico, Um Povo altamente tecnológico, Com Refinada e Profunda Concepção do Mundo e dos Multiversos. Sua Cosmopercepção Baseia-se Num Cosmograma Chamado Dikenga, Um Círculo Divido Em Quatro Quadrantes Correspondentes às Quatro Fases dos Movimentos

Ritmos do Candomblé Brasileiro

           Os ritmos do Candomblé (culto tradicional afro brasileiro) são aqueles usados para acompanhar as danças e canções das entidades (também chamadas de Orixás, Nkises, Voduns ou Caboclos, dependendo da "nação" a que pertencem). Ritmos de Diferentes Nações de Candomblés no Brasil São cerca de 28 ritmos entre as Nações (denominação referida à origem ancestral e o conjunto de seus rituais) de Ketu, Jeje e Angola . São executados, geralmente, através de 4 instrumentos: o Gã (sino), o Lé (tambor agudo), o Rumpi (tambor médio) e o  Rum (tambor grave responsável por fazer as variações). Os ritmos da Nação Angola são tocados com as mãos, enquanto que os de Ketu e Jeje são tocados com a utilização de baquetas chamadas Aquidavis (como são chamadas nas naçoões Ketu_Nagô). " Em candomblé a gente não chama "música". Música é um nome vulgar, todo mundo fala. É um...como se fosse um orô (reza) ...uma cantiga pro santo ".  A presença do ritmo n

Arquivos do blog

Mostrar mais