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Griôs: da Áfrika ao Brasil, os guardiões da memória


Diz o provérbio malinké: "Um homem pode enganar-se em sua parte de alimento, mas não pode enganar-se na sua parte de palavra"...

Guardiões das cabaças da existência, onde pulsa o poder da criação e da preservação da memória dos tempos, os griôs rompem o silêncio secular imposto pelas mãos de opressores.

"O ofício do griot sempre foi a preservação da memória de seu povo, a transmissão dos saberes, como sacos invasiáveis de palavras, portadoras de segredos seculares. Causadores de medo porque filhos e netos das canções que não mentem, portanto, verdadeiros punhais ardentes.", disse Lepê Correia, em seu ensaio "DE LUANDA A BENGUELA: ZELO PELA MEMÓRIA"

Amadou Hampaté Bâ, um mestre  malinês da tradição oral africana, tornou-se um marco e uma das maiores referencias no que diz respeito à expansão e preservação do universo dos Djelies não apenas na Afrika, mas também por vastos territórios do mundo ocidental. Ele nos diz:

"O ofício ou a atividade tradicional esculpe o ser do homem. Toda diferença entre a educação moderna e a tradição oral encontra-se aí. Aquilo que se aprende na escola ocidental, por mais útil que seja, nem sempre é vivido, enquanto o conhecimento herdado da tradição oral encontra-se na totalidade do ser."


A oralidade foi considerada uma forma de transmissão de conhecimento muito inferior à escrita na Europa e em outros países ocidentais. 

Assim, ao decorrer de longos processos de imposições de costumes sócio-culturais, cosmovisões, imposições de pedagogias de educação infantil, imposições de crenças e ainda por cima roubo e apropriação de tecnologia por parte de opressores e colonizadores, o poder da palavra entoada foi perdendo força para a palavra escrita nos territórios da diáspora negra. 

O desenvolvimento dos meios de comunicação foi distanciando o Muntu ( o ser Vivo) de seus semelhantes, passando a viver uma realidade virtual em detrimento de se conectarem de uma maneira presencial.

Os sites buscadores da internet se transformaram em griôs pós-modernos, diluídos  guardiões da verdade para muita gente. 

Pouco a pouco, ironicamente, a figura do guardador da memória foi sendo esquecida na árvore da memória ... Os mais velhos foram e estão morrendo, e com eles o conhecimento que tinham recebido de seus mais velhos e estes dos seus ainda mais velhos ... 

Foi-se perdendo o cotidiano de convívio com mestres das tradições ancestrais. Os Alfaiates, Os fazedôres de Munzuá, os Relojeiros, os Viajantes ...

No Brasil foi se perdendo até a noção de como se nasce naturalmente, de como se trata de doenças naturalmente, de como se vive naturalmente. 

Uma terra paradoxalmente formada em sua estrutura étnica por muitos povos de origem nativa ou afrikana, povos que tem forte conexão com ancestralidade, com a memória e com o respeito e reverência à natureza que, no entanto,  acabaram gerando descendentes que foram se alijando e sendo alijados pela barca guardiã de sua própria herança ancestral.

Atravessaram por seguidos processos de colonização, de catequização. Essas crias da diáspora foram sendo obrigados a experienciar acelerados fluxos de transição entre sistemas econômicos, foram se adaptando à era de globalização  e do capitalismo, dando novos nomes para padrões de fatos históricos, de corrupção, escravidão, massacre mental, catequização forçada, estupros, preconceito e caos na grande maioria dos cenários políticos locais, internacionais, bem como nas relações interpessoais.

Como hoje me lembrou Òrìsànlà Bengui, em um post numa rede social, se no passado o Atlântico viu a travessia lamentosa da diáspora negra, agora são os mares Mediterrâneos que se tornaram túmulos líquidos de corpos afrikanos.

Continuam presos nesta mandala de perda de memória, de dependência, de fome, miséria e escravidão. 

Mas o que os opressores não percebem é que eles mesmos estão sabotando seu próprio processo de cura e desenvolvimento ao estarem sabotando as terras originárias, que eles e seus próprios ancestrais exploram há séculos. 

Precisamos nos lembrar de quem somos, de como viviam nossos ancestrais para sanar estas feridas históricas, que vão se repetindo em padrões kármicos.

E nem Áfrika e seus inúmeros territórios de um lado, nem Américas e os seus de outros vamos ter capacidade, ferramentas e dispositivos filosóficos e encantaría estruturais sozinhos porque parte do conhecimento veio para cá e parte do conhecimento ficou lá. do outro lado do oceano. 

Juntos. Somente juntando as peças de ambas faces do oceano é que entenderemos os caminhos e receberemos as ensinanças que nos trarão e trazem re-conexões entre estes elos perdidos.

Porque as ancestralidades já se misturaram. O eco de suas vozes ressoam juntos há vários séculos ... de um lado e do outro ... 

Mas tudo ainda está fragmentado e desconectado ...  

Bantu, as Pessoas, um bocado de Muntu, de Ser Vivente -Juntos. Roçar o Ponto de Aglutinação. Permitir a circulação da informação ancestral, o sangue sagrado que rega o corpo da comunidade.

Por séculos, depois da invasão da Áfrika, os "invasores" tentaram alijar os griôs da barca da sua própria comunidade. 

Em Angola (Áfrika Bantu), a tradição oral ancestral é guardada pelos Sobas, que se tornam cada vez mais raros, sobretudo nas grandes cidades, onde há poucos especialistas. 

Neste presente tempo de 2018, estes raros Sobas que ainda restam são marginalizados pelas próprias comunidades que, ao converter-se às religiões coloniais e ao capitalismo passaram a rejeitar sua cultura tradicional. 

Assim, a própria comunidade hostiliza e discrimina os especialistas e defensores das culturas africanas originárias. 

Fazendo-se extremamente necessário um renascimento do Muntu, do homem negro dentro do próprio homem negro, a retomada de consciência crítica, o desvencilhamento destes dispositivos coloniais transvestidos de diferentes formas que separam os indivíduos da sua essência que ultrapassa o plano do indivíduo para trabalhar no plano comunitário, o sentido de ubuntu, termo bantu usado no sul da Áfrika para expressar uma maneira de viver que está totalmente conectada com a totalidade essencial da humanidade em comunhão com a natureza e com tudo que o cerca. 

Para despontar sua ancestralidade, para relembrar de sua história e nós, enquanto brasileiros, filhos desta diáspora, nós temos implicação direta nesse processo de reinvenção da Áfrika, tanto quanto nas Américas. somos filhos de uma mesma seiva.

Não conseguimos compreender o que é um mestre da cultura popular brasileira sem entender o que é um mestre Griot na Áfrika, nem nas culturas indígenas nativas.


Falar do terreiro dos griôs aqui no Brasil é falar de transculturalidade, hibridação, nomadismo.

E, sobretudo, falar de Memória. 

Memória Mineral. 

Memória Vegetal. 

Memória Embriomática.

Memória Cromossômica. 

Memória Quântica.

Memória Cósmica.

.

>>> Os griôs na Áfrika:
Sabemos que a Áfrika é um continente muito grande e diverso em aspectos culturais, sociais, econômicos, políticos, linguísticos, naturais, etc. Ainda assim, tem coisas que fazem parte da ancestralidade da grande maioria dos povos africanos, entre eles a figura do mestre ou da mestra guardião do conhecimento antigo, das histórias, das tradiçōes, dos segredos das folhas de cura, resumindo em uma palavra, ainda que talvez não seja a melhor palavra para definir essa pessoa, um griô.

. Dielies . Os griôs na África
A palavra griô encontra-se em crise conceitual entre mestras e mestres dos saberes populares em várias regiões da Áfrika e em regiões do atlântico negro herdeiras da diáspora africana, por ser uma palavra imposta colonialmente. 

Assim, a palavra "griot" pode derivar da transliteração francesa "guiriot" da palavra portuguesa "criado" ou "servo". 

Entretanto, refere-se à tradução do termo "dieli" (Jéli ou Djéli), palavra encontrada na África Malinké (Mandengue), que designa o cidadão que tem por missão a transmissão do conhecimento de uma tribo ou de um povo através das gerações.

Em cada região africana, estes mestres e mestras recebem nomes diferentes, assim, na Áfrika Yorubá são chamados "Akapalô, aquele que guarda e transmite a memória de seu povo",são chamados "Guewel", em Wolof, "Gawlo" em Pulaar (Fula) e "Iggawen" em Hassanivan.


Afrika Mandinga Malinké Bambara

Ao que parece o termo "griô" não é totalmente bem aceito entre os djelis africanos, no entanto, ela se expandiu por todo o mundo e vem sendo re-inventada através dos movimentos da grande Kalunga, como uma tradução "universalizada". 

Assim, para os Mande o termo "djeli" refere-se ao Sangue, pois ambos circulam - um pela sociedade e o outro pelo corpo. Nessa parte da África um griô nasce griô, porque descende de uma linhagem de griôs. Vem de Sangue.

Na África Ocidental, incluindo Mali, Gâmbia, Guiné e Senegal, os djelies ou griôs são figuras fundamentais no cotidiano de suas comunidades. 

"Os Mandinga, Mandinka, Malinké, Mandé ou Manden constituem um grupo étnico da África Ocidental. Atualmente, existem cerca de 13 milhões de Mandingos vivendo em diferentes países da África Ocidental na Gâmbia, Guiné, Guiné-Bissau, Senegal, Mali, Serra Leoa, Libéria, Burkina Faso e Costa do Marfim. As línguas do Mandé pertencem a um ramo divergente da família linguística do Níger-Congo. As línguas de mandarim mais comuns são Mandinka na Gâmbia e Senegal, Malinké na Guiné e Mali, e Soninké nos estados do sul da África Ocidental, e que, como as outras línguas da África Ocidental, terminam em -ke ou -ka. Eles também falam Kriol e Português na Guiné-Bissau, Francês no Senegal, Mali, Côte d'Ivoire e Burkina Faso, e Inglês na Libéria, Serra Leoa e Gâmbia".

Responsáveis por guardar e transmitir através da oralidade a história dos reis e de seu povo, os griôs são treinados na arte da palavra desde a infância por seus pais, avós, sua família e a comunidade.

Existem vários tipos de griôs na África Ocidental: há os que exercem o ofício de historiadores, genealogistas, os caçadores, contadores de histórias, poetas, os artesãos, os músicos que cantam e tocam o tantã, o balafone, o ngoni, o djambê e a kora.

Das primeiras referências que eu tive em minha vida sobre os griôs africanos, a referência foram os Djelies da África Ocidental, mas por quê ? Talvez porque dos territórios africanos (sendo que em todos os territórios existem pessoas nas comunidades que desempenham o papel de mestre de tradição popular ou encantada) o território que ficou conhecido como Afrika Malinké foi dos que melhor resguardou a importância do Griot para o bom funcionamento da comunidade.

Mali , antigo Império Mandengue, onde dentre as línguas nativas estão o Malinké ou Bambará, sofreu forte impacto com a colonização francesa em suas terras.

Quando então os griôs enfrentaram muitas adversidades para manter a história e a cultura de seu povo.

Nesta região costuma-se que os Djelies pertence à divisão da casta "Nàmàkàlá", na qual os direitos e os deveres são hereditários e referem-se a ofícios na sociedade. 

Ao contar histórias, contos e poesias épicas, os Griôs educam e encorajam seu povo, alimentando a memória, a consciência e o coração daqueles que os procuram, como um baú que guarda uma sabedoria ou um conhecimento acumulados ao longo de sua vida com fortes conexões com sua herança de conhecimento ancestral também, e têm como veículo de transmissão destes saberes, as técnicas linguísticas orais, físicas e musicais-poéticas.  

Conta-se que em partes da terras malinké, nos sistemas tradicionais de algumas comunidades, os ciclo de educação de uma criança griô é dividido por períodos de septênios (de sete em sete anos), sendo o primeiro com a mãe, o segundo com o pai, o terceiro na rua. Conta-se que aos quarenta e dois anos um griô tem o direito a emitir a própria opinião e ao sessenta e três anos torna-se um transmissor. 

A palavra para eles é sagrada e tem o poder de trazer a cura ou a perturbação.

Assim, desde criança, o Djeli aprende a usar seu poder, mantendo-se disponível para o outro, servindo-o com histórias, investigando genealogias, conduzindo e organizando festas, cerimônias, eventos culturais e assumindo diversas funções na sociedade. Engajado em valorizar e perpetuar as raízes do seu povo (seu papel na sociedade), o Djeli é fundamental, pois fortalece a resistência cultural de um povoado, de uma vila, de uma tribo. 

Contudo o djeli não exclui o estrangeiro, ao contrário, aproxima-se da cultura do outro para que o outro receba e conheça o que a sua tradição traz e o que lhe sustenta.  Como um artesão da voz, o djeli tem um comportamento diferenciado na sociedade, pois o seu dever de guardar e transmitir a história de seus reis e de seu povo lhe atribui a missão de mantê-las vivas na memória e no coração do outro. 

Ao contar suas histórias resgata algo que com o passar do tempo pode vir a adormecer: o legado dos antepassados.

Suas histórias não podem ficar guardadas e esquecidas, devem permanecer na ponta da língua e no coração daqueles que possuem a arte da palavra.  

É muito comum que os griôs tenham extremo conhecimento musical. 

Na cultura mandengue entre os griôs são profissões muito importantes: 
os Garanke ou Káraké (que trabalham com couro e/ou são sapateiros), 
os Nùmú (ferreiros), 
os Kèlé (que trabalham a madeira), 
os Fune ou Fina (religiosos especializados no alcorão), 
os Fína, 
Fínè 
ou Fùnù (os mestres das palavras, que possuem o dom da palavra).

Por fim, existem os Djèlí, Jèlíli (griôs que dispõem do dom da palavra, do canto e da música). 

Sendo encabeçados pelos que tocam cordas, 
depois os que tocam xilofone (balafone), 
os instrumentos de sopro (bùdùfolá, fùlanifolá e filèfolá) 
e os griôs que tocam instrumentos de percussão (djambés, dunumbá).

Uma das grandes habilidades de um griô diz respeito também à genealogia - deles mesmos e de famílias da aldeia. Possui uma memória de poder imensurável e são verdadeiras "enciclopédias ambulantes". 

Mesmo que se fale menos sobre as griotas ou griôs mulheres elas obviamente existem e com certeza trazem muita maestria em diversos aspectos. Mas com certeza em muitos aspectos secretos, ligados à ancestralidade e conhecimento das artes do parto, da cura com ervas sagradas

Em alguns territórios da Áfrika Malinké, as mulheres griôs são chamadas de Djelimussow e possuem a enorme habilidade do canto e também recitam e tocam um instrumento de ferro ou uma enxada.

Ultimamente tenho conhecido cada vez mais mulheres afrikanas que tocam as harpas ancestrais, que em sua grande maioria vemos apenas homens tocando.


>>> Os griôs no Brasil:

O griô brasileiro vem se inventando, sendo inventado e se reinventando. 

Antes mesmo do termo "griô" começar a ser difundido no meio da cultura, da educação e até das mídias no Brasil, os griôs eram conhecidos como guardiões dos saberes populares. 
Por muito tempo diversas práticas destes mestres, seja no âmbito da cultura, das medicinas ou da espiritualidade popular foram excluídas socialmente, mal vistas e marginalizadas. No entanto, tiveram papel fundamental no funcionamento das estruturas de nossa sociedade desde os tempos da invasão colonial. 

Quando o padre de uma igreja não conseguia realizar uma cura ou possessão, a quem se recorria a pessoa enferma ou possuída?

"Além de oficiantes religiosos, esses personagens sabiam preparar tisanas, cataplasmas e ungüentos que aliviavam os males corriqueiros dos habitantes da colônia, eram também capazes de curar doenças mais graves como a tuberculose, a varíola e a lepra, usando os recursos da farmacopéia tradicional, participaram inclusive do combate às epidemias que assolaram a Bahia em meados do século XIX; também sabiam curar distúrbios mentais ou espirituais, usando tratamentos combinados e complexos."  (fonte: Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora; Revista de História da Biblioteca Nacional.) 

No atual contexto em que estamos vivendo, sob a bandeira de uma ditadura política, parece haver se transformado num requisito fundamental para a evolução nacional a reflexão e valorização da presença do griô (mestra ou mestre do saber popular) na sociedade brasileira. A invasão e colonização do Brasil criou um trauma social muito grande em seu povo. Durante o processo colonial, quando violências foram cometidas contra os indígenas e posteriormente contra africanos, com a imposição de costumes religiosos e práticas culturais, muita informação, conhecimento e sabedoria foram perdidos ou calados. Tentaram enterrar a sabedoria ancestral dos povos que formaram o Brasil, mas se esqueceram que a semente que cai em terra fértil pode parecer morta, mas quando tem seu ponto de dormência quebrado, brota nova planta. 

A verdadeira história não foi contada nos livros nas escolas. A verdadeira história foi passada de boca a boca, de geração para geração entre senzalas, praças, plantações de cana, minas da ouro, entre cais e portos. A verdadeira história foi contata através de metáforas e floreios de linguagem em canções de trabalho ou cantigas de ninar. Nas noites em que a fogueira ardia nas celebrações do jongo, e as palavras secretas eram pronunciadas, entre mandingas e danças, entre o cheiro de plantas e raízes de cura.

Rezadeiras, parteiras, raizeiros, bonequeiros, contadores de histórias, repentistas, curandeiros, erveiros, sambadêras, benzedeiras, músicos, dançarinas, mestres e mestras da capoeira, marisqueiras ... no Brasil o entendimento do conceito de "griô" vem se reinventando ao passo em que a sociedade vai entrando em colapso estrutural e faz-se necessário conhecer, reconhecer e exaltar as influências tribais tanto africana quanto indígena de sua concepção sócio-cultual e política. 

Ao passo que nas embranhas africanas (especialmente no caso da África Malinké), um griô deve nascer de uma família de griôs para ser um griô, aqui no Brasil essa rigidez foi aquebrantada. 

Ainda que muitos mestras e mestres sejam herdeiros de tradições ancestrais desde os tempos de suas avós, uma pessoa pode desenvolver sua maestria ao longo de sua vida e de suas experiências. Também importante ressaltar que, ao menos na África Malinké, a maioria de Djelis ou griôs são homens. Aqui no Brasil a mulher mestra existe em abundância e daqui para a frente sua força e representatividade será cada vez mais celebrada, já que estamos passando por um momento de transformação e questionamento do patriarcado.

“O Griô surge como uma metáfora da memória e ancestralidade do povo brasileiro, memória viva de povos que não se calaram e mantiveram vivas suas tradições e identidades em comunidades de re-existência. Griô ou Mestre(a) é todo(a) cidadão(ã) que se reconheça e seja reconhecido(a) pela sua própria comunidade como herdeiro(a) dos saberes e fazeres da tradição oral e que, através do poder da palavra, da oralidade, da corporeidade e da vivência, dialoga, aprende, ensina e torna-se a memória viva e afetiva da tradição oral, transmitindo saberes e fazeres de geração em geração, garantindo a ancestralidade e identidade do seu povo. A tradição oral tem sua própria pedagogia, política e economia de criação, produção cultural e transmissão de geração em geração.” 
(fonte: http://umbigofilme.com.br/val-grio/)

Acho que é necessário ressaltar aqui a importância da influência dos indígenas na criação da figura do griô brasileiro. Eram os indígenas quem mais tinham conhecimento dos segredos de nossa geografia e ambiente nos tempos da invasão colonial. Foi deles que herdamos instrumentos musicais, comida, lendas e mitos. Foi dessa mistura que nasceu nosso jeito lindo de falar as palavras. 


Cacica Maiá, griô indígena bahiana
 Guardiões da Sabedoria Popular de um Povo

Na Bahia nasceu o projeto "Ação Griô Nacional", criado pelo ponto de cultura "Grãos de Luz e Griô", em Lençóis, na Chapada Diamantina, que propôs em 2006 a criação de uma rede que envolveu 130 projetos pedagógivos de diálogo entre a tradição oral e a educação formal, cadastrando mais de 750 griôs e mestres bolsistas da tradição oral do Brasil. Aqui nesse link você pode conhecer mais sobre o trabalho do Grão de Luz: http://graosdeluzegrio.org.br/ 

A Fundação José de Paiva Netto produziu uma série chamada "Mestre e Griôs do Brasil - edição Vale do Paraíba", com vídeos de 24 minutos de duração, mostrando a atuação de mestres e griôs do Vale:

               


>>> Como nasce um griô na África Malinké:

"Conta-se que certa vez, um caçador e seu cão procuravam algo para comer no meio da floresta quando se deparam com uma grande árvore. Ao pé da árvore estava um estranho instrumento. Tinha uma grande cabaça com várias cordas estiradas sobre ela e de onde saía uma doce melodia que lhes prenderam a atenção.
O caçador, com medo se aproximou do estranho instrumento para ouvir melhor quando se aproxima um velho espírito disfarçado em homem. O caçador lhe pergunta:
“Bom dia nobre senhor! Acaso sabes de quem é este estranho instrumento? Acaso sabes o que é?”
O espírito disfarçado de homem lhe responde com naturalidade:
“Bom dia caçador! Sim sei... é uma kora e é minha! Queres ver como se toca a kora ?
O estranho espírito disfarçado de homem tocou a kora com muita delicadeza e seu som penetrou no coração do jovem caçador, que foi aprendendo como tocar. Ao final da tarde, já tendo experimentado como tocar a kora, o espírito disfarçado de homem levantou-se e disse ao caçador: “Leve para casa, toque-a e eu te mostrarei muito mais!”.
Mas, logo em seguida colocou uma condição para que o estranho homem seguisse lhe ensinando (o caçador não sabia se tratar de um espírito): ele deveria tocar durante o dia para a sua aldeia, mas, à noite ele seria visitado por um espírito em seus sonhos.
O caçador voltou à aldeia e tocou para a sua gente que ficou fascinada com a beleza das melodias que cantavam as façanhas dos ancestrais numa “linguagem cheia de imagens e flores”. Sempre que chegavam visitantes e estrangeiros para conhecer o lugarejo, o cantor (que já não caçava mais...) entoava suas canções com o magnífico instrumento.
O caçador não se esquecia do homem que encontrara no meio do caminho (ele não sabia que se tratava de um espírito) e à noite, em seus sonhos mais profundos, o homem lhe mostrava lugares nunca vistos, falava com os ancestrais que lhe contavam muitas histórias, aprendia a compor novas e velhas melodias e aprendia a construir outras kora.
Quando, numa certa noite, o estranho homem contou-lhe que, na origem dos dias, o espírito das coisas fez-se homem e se pôs a falar numa linguagem muito estranha, “cheia de imagens e de flores”. As pessoas da aldeia daquele homem não compreenderam aquela linguagem estranha e, considerado como louco, foi atirado ao mar. Foi, então que, um peixe devorou o homem. 
Mais tarde, um jovem pescador conseguiu pescar aquele peixe que havido devorado o homem. Assou-o e o comeu satisfeito. Mas, com o passar do tempo o jovem pescador começou a falar numa linguagem misteriosa que ninguém, em sua vila, compreendia. As pessoas o apedrejaram e foi enterrado bem fundo na terra.
Com o passar dos anos, o vento que vinha do deserto foi descobrindo a cova em que o pescador foi enterrado e alguns restos de seu corpo foram parar no cuscuz (“kous-kous”) de um caçador. Logo em seguida, aquele caçador desavisado começou a narrar coisas desconhecidas de sua tribo, sem saber de onde vinham aquelas palavras estranhas cheias de imagens e flores de velhos tempos. Sua tribo, por achar perigoso o comportamento estranho daquele caçador, o exterminou reduzindo a pó o seu corpo e, sem perceber o erro, lançou o pó ao vento.
Foi quando um homem que tocava sua kora na floresta, afinando as cordas sobre a maravilhosa cabaça e extraindo as mais belas harmonias com seu instrumento, foi surpreendido por uma rajada empoeirada de vento e respirou os pequenos grãos de poeira que sobraram do corpo do caçador. 
Em seguida, o homem começou a cantar e a se acompanhar com a kora; e as canções e histórias, que saiam de seus lábios, cheias de imagens e flores, fizeram com que todos de sua aldeia, que o ouvissem, se pusessem a chorar: alguns de tristeza, outros de alegria, outros com intensa saudade. E todos, sem saber, ao certo, a razão disso. Por isso, deixaram-no viver. Pois é dessa forma que nasceu o griô.
Assim, o jeliya ou griô pode criar e, ao mesmo tempo, ser fiel à tradição. Grávido e orgulhoso de sua ancestralidade aprende na noite de seu espírito, dedilha memórias e canta nascentes". 

>>> Alguns Griôs brasileiros:

Dona Val Parteira e Griô 


Parteira. Enfermeira. Líder comunitária. Ativista política. Professora de ginástica (criou um grupo de futebol feminino). Autodidata na sabedoria das plantas medicinais que cultivava junto a hortaliças e um belo jardim. Ativista da Macrobiótica.
                                            

Dona Val, parteira e griô baiana

Mestre Pastinha
Vicente Ferreira Pastinha foi um grande capoeirista e filósofo da capoeira. Começou a aprender as mandingas do jogo com o africano Benedito, que começou a lhe ensinar para se defender das provocações das crianças da vizinhança. De jovem, serviu à Marinha e, em 1910, tornou-se professor de capoeira. Ao longo dos anos, foi organizando a arte do jogo, fundou sua própria escola em 1941, estabeleceu um método de ensino com base em antigas tradições trazidas por africanos escravizados e escreveu o livro "Capoeira Angola". Mas chegou à velhice em descaso e morreu na pobreza.




Dona Dalva do Samba
Mestra sambadêra que marcou história do samba de roda, em Cachoeira, na Bahia.

Mestre Elias 
Fundador do primeiro grupo de teatro da Bahia, Mestre Elias bonequeiro. Capacita adolescentes e jovens passando as técnicas de teatro de bonecos e os envolve com a cultura popular do mamulengo, além de fomentar a formação de novos grupos de teatro de bonecos.


  



Mestre Gegê
Nascido no interior de Minas, criado por seu pai sírio, Mestre Gegê se mudou para Mariana onde por muitos anos foi maestro de música e regente da Banda União XV de Novembro, Mestre Gegê foi pai de 7 filhos, comerciante, relojoeiro, escrivão, carnavalesco e profundo conhecedor de plantas e bichos, especialmente os passarinhos. Educou através da música diversas gerações, deixando vasto legado e muitas histórias de passagens de sua vida.


Mestre Cobra Mansa
É um mestre de Capoeira de Angola. Convidado pela Sociedade Aussar Auset, em 1994, Cobrinha mudou-se para os Estados Unidos, iniciando um trabalho de Capoeira Angola em Washington D.C. Em 1995, fundou a FICA – Fundação Internacional de Capoeira Angola junto aos Mestres Jurandir e Valmir. Em 2004 retornou a Salvador, para criar o Kilombo Tenondé, fazenda onde realiza cursos sobre Capoeira Angola e Permacultura. Mestre Cobrinha é respeitado por seu profundo conhecimento da arte da Capoeira e é uma grande referência para toda comunidade capoeirística do Brasil e do mundo, ministrando palestras em universidades e entidades culturais. Recentemente ele completou uma pesquisa na região centro-oeste da África, em busca das raízes da Capoeira naquele continente, lançando o documentário “Jogo de Corpo: Capoeira e Ancestralidade”. (fonte: http://www.kilombotenonde.com/kilombo-tenonde/cobra-mansa-1)
              
Oswaldo Griot - o griô que conta histórias através da pintura....
Quem já ouviu falar em Oswaldo Roberto Griot? Um dos maiores pintores da arte negra brasileira? Quem já viu, já tocou alguma de suas telas, cheia de histórias sobre o mistério de nossa vida tropical e universal?
Roberto Griot inicia sua carreira artística em 1950, com o grande Heitor dos Prazeres, no Rio de Janeiro, fazendo sua primeira exposição em 1960. Nove anos após, monta sua primeira galeria com o filho do referido artista, desenvolvendo as técnicas de restauração, decoração e exposição. Simultaneamente, trabalha em São Paulo com a primeira Casa de Leilão das Artes do país. Em 1978 coordena o I Salão de Artes Negras no MAM, Rio de Janeiro.
Em 1979, toma maior conhecimento da relação forte entre a cultura do homem brasileiro com a África e vem para a Bahia, onde desenvolve o trabalho da Cultura Negra através da Arte.
para a arte negra e a diversidade cultural brasileira. vem para a Bahia em 1979, e passa a ter contato com vários artistas negros dando continuidade à sua jornada na cultura negra, que vai refletir diretamente em seus trabalhos. Nesse mesmo ano, faz uma exposição na Galeria Época, em Salvador.
De 1980 a 1987, assume a presidência da Associação dos Artesão do Centro Histórico de Salvador, quando coordena a Feira de Artes da Praça do Campo Grande e uma grande exposição no Foyer do Teatro Castro Alves. Deixando a presidência da Associação, em 1988, faz parte do comitê artístico do FEPASC - Festival Pan Africano das Artes e das Culturas, e após esse evento em 1989, inaugura a Galeria ILEKUN-IFÁ, no bairro do Carmo, Centro Histórico de Salvador. Daí nasce o projeto  Cultura Negra Através da Arte CNAA - Senac - Ba, e a criação do INAC - Instituto Negro de Arte e Cultura de Salvador, apoiado e reconhecido pela Funcação Palmares, pela Fundação de Cultura e Paz e pelo Instituto do Patrimônio Artístico e CUltural (IPAC), que realizou vários movimentos com o objetivo de buscar a auto-estima e perspectiva de futuro para o cidadão afro-descendente. 
Nesse período inicia uma jornada de exposições e fóruns ligados ao tema de cultura negra. Essa trajetória vai levá-lo a uma formação profissional de produtor cultural, artesão, escultor, restaurados e artista plástico. Em 1991, coordena a área de artes plásticas do Fórum de Entidades Negras da Bahia e do 1º ENEN - Encontro de Entidades Negras em São Paulo.
Em 1999, abre seu atelier na Ladeira do Carmo, 03 e nesse mesmo ano coordena o Grupo Bem Belo Verdade - BA.
Como artista plástico, Griot tem um dos trabalhos de maior referência à cultura negra na Bahia, pois expõe em suas telas e esculturas através de uma técnica mista, um tema que reflete a combinação de símbolos religiosos, onde através do contato com o candomblé e a umbanda, o artista vai buscar a relação entre os orixás, a numerologia, a astrologia..... e toda essa leitura simbólica vai ser traduzida na tela na composição de sua obra.
"A arte pra mim é formada de informações que vai se adquirindo com o decorrer do tempo e ela torna-se visualmente uma imagem, histórica, holística e não-religiosa."  Roberto Oswaldo Griot

FONTES:
DE LUANDA A BENGUELA: ZELO PELA MEMÓRIA, Lepê Correia
Enciclopédia da Música Brasileira - Art Editora; Dicionário Aurélio; Revista de História da Biblioteca Nacional. 
http://umbigofilme.com.br/val-grio/
http://www.substantivoplural.com.br/griots_livro.pdf
https://books.google.com.br/books?id=0RguDwAAQBAJ&pg=PT139&lpg=PT139&dq=tambor+e+ancestralidade&source=bl&ots=nT-_M6R_gJ&sig=_ZQlRzRjzmeDvB4_raDUQ0EYA7Q&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwi78sex5sXXAhWMkpAKHa-vAUYQ6AEIUDAL#v=onepage&q=tambor%20e%20ancestralidade&f=false
https://educalingo.com/pt/dic-es/malinke

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Guedra A palavra "Guedra" quer dizer "caldeirão" e também "aquela que faz ritual". Guedra é usado para nomear um ritual de transe do "Povo Azul" do deserto do Saara, que se estende desde a Mauritânia passando pelo Marrocos, até o Egito. Através da dança e da ritualística que a envolve, esse povo traça místicos símbolos espalhando amor e paz, agradecendo a terra, água, ar e fogo, abençoando todos os presentes entre pessoas e espíritos, com movimentos muito antigos e simbólicos. É uma dança ritual que, como o Zaar, tem a finalidade de afastar as doenças, o cansaço e os maus espíritos. Guedra é uma dança sagrada do "Povo do Véu" ou "Kel Tagilmus", conhecido como "Tuareg. Em árabe, "Guedra" é Também o nome de um pote para cozinhar, ou caldeirão, que os nômades carregam com eles por onde vão. Este pote recebia um revestimento de pele de animal, que o transformava em tambor. Somente as mulheres dançam "G

Os Quatro Ciclos do Dikenga

Dikenga Este texto sobre os ciclos do Cosmograma Bakongo Nasce da Essência da compreensão de mundo dos que falam uma dentre as línguas do tronco Níger-Kongo, em especial Do Povo Bakongo.  Na década de 90 o grande pensador congolês chamado Bunseki Fu Ki.Au veio  ao Brasil trazendo através de suas palavras e presença as bases cosmogônicas de seu povo, pensamentos que por muitos séculos foram extraviados ou escondidos por causa da colonização da África e das Américas e dos movimentos do tráfico negreiro. Fu Ki.Au veio nos ensinar filosofia da raíz de um dos principais povos que participaram da formação do povo brasileiro, devido aos fluxos da Diáspora. Transatlântica. Segundo Fu Ki.Au, “Kongo” refere-se a um grupo cultural, linguístico e histórico, Um Povo altamente tecnológico, Com Refinada e Profunda Concepção do Mundo e dos Multiversos. Sua Cosmopercepção Baseia-se Num Cosmograma Chamado Dikenga, Um Círculo Divido Em Quatro Quadrantes Correspondentes às Quatro Fases dos Movimentos

Ritmos do Candomblé Brasileiro

           Os ritmos do Candomblé (culto tradicional afro brasileiro) são aqueles usados para acompanhar as danças e canções das entidades (também chamadas de Orixás, Nkises, Voduns ou Caboclos, dependendo da "nação" a que pertencem). Ritmos de Diferentes Nações de Candomblés no Brasil São cerca de 28 ritmos entre as Nações (denominação referida à origem ancestral e o conjunto de seus rituais) de Ketu, Jeje e Angola . São executados, geralmente, através de 4 instrumentos: o Gã (sino), o Lé (tambor agudo), o Rumpi (tambor médio) e o  Rum (tambor grave responsável por fazer as variações). Os ritmos da Nação Angola são tocados com as mãos, enquanto que os de Ketu e Jeje são tocados com a utilização de baquetas chamadas Aquidavis (como são chamadas nas naçoões Ketu_Nagô). " Em candomblé a gente não chama "música". Música é um nome vulgar, todo mundo fala. É um...como se fosse um orô (reza) ...uma cantiga pro santo ".  A presença do ritmo n