A dimensão espiritual das relações na etnia Dagara, por Sobonfu Somé. Artigo escrito por Issa Mulumba
Qualquer que seja, a filosofia africana é
um caminho para analisar em sua particularidade aquilo que é bom e aquilo que
nem tanto para o projeto de descolonização e busca da afrocentricidade como
meio de garantia de existência dos africanos do continente e da diáspora.
Podemos analisar de maneira afrocentrada a economia da nossa comunidade e o
modo como o dinheiro circula entre os nossos, as oportunidades e capacidade que
os negros têm de fazer algo, os aspectos culturais que mantêm as nossas
tradições vivas e também as nossas relações interpessoais, de amizade e amor na
comunidade.
Certo
de que muitas das nossas práticas de vivência em comunidade precisam se manter
vivas e cientes também das nossas peculiaridades enquanto africanos da diáspora
devemos, se quisermos, problematizar o nível das nossas relações, as
possibilidades de envolvimento emocional e como isso está atrelado à nossa
ancestralidade e saúde coletiva na comunidade. Quais seriam as perspectivas de
relacionamento afetivo entre pessoas negras? A liberdade tão pregada nos moldes
de relacionamento de pessoas não negras nos contempla?
Sobonfu Somé, foto: Nut Tmu-ankh |
À luz da filosofia Dagara, uma das mais de dez etnias conhecidas de
Burkina Faso, a professora e filósofa Sobonfu Somé nos traz as possibilidades
de relacionamento de acordo com a espiritualidade africana. Sobonfu, que saiu
ainda jovem de sua comunidade para ensinar na Califórnia, nos explica que aqui
no ocidente, de algum modo, a espiritualidade não é considerada como
participante do relacionamento, e que essa perspectiva de relação baseada na
romantização do parceiro pode ser motivo para grande frustração. Para a
professora, o relacionamento é um acordo que os espíritos ancestrais já fizeram
no plano espiritual antes mesmo de cada pessoa nascer, e cada ser humano veio
para uma trajetória ou mais com determinadas pessoas, às vezes cobramos dos
nossos parceiros um excesso de romance, uma prova cabal de amor desmedido para
que nós possamos nos sentir verdadeiramente amados, a custo de abdicações e
privações do parceiro. O alto da colina é definido no livro “O Espírito da Intimidade: Ensinamentos
ancestrais africanos sobre maneiras de se relacionar.” como o momento
inicial das relações vividas no ocidente, em que, embebidos de grande paixão,
os companheiros não tem outro lugar para atingir no relacionamento senão rolar
colina abaixo e prematuramente chegar ao fim, sem dar lugar à vontade
espiritual que os uniu, para que um relacionamento seja saudável deveria
começar de baixo, da base da colina, levando em consideração o tempo e sua
força espiritual para condução das relações. Partilhar uma jornada de companheirismo
com alguém é convidar essa pessoa para uma jornada espiritual em busca da
felicidade, onde objetivos estejam alinhados, onde o respeito, o companheirismo
e ajuda mútua na busca dos objetivos devem ser a tônica da relação,
proporcionar ao parceiro ou parceira as condições necessárias para alçar os
objetivos nessa caminhada juntos, alinhados espiritualmente num acordo que leve
em consideração a construção na vida de ambos, algo que parece bem distante
nesse ocidente em que estamos não é mesmo?
Sobonfu Some, especialista em rituais da África Ocidental |
Parece encantamento e é; até sermos todos configurados como civilização
o mundo sempre foi encantado e o encantamento sempre foi fundamental nas
comunidades tradicionais africanas e aqui no Brasil nos povos indígenas, sempre
houve a dimensão espiritual na forma de estabelecermos nossas relações, como
trazer esses ensinamentos de espiritualidade e ancestralidade para nossas
relações afim de que tenhamos também nesse ponto uma postura afrocentrada e
voltada a nossos termos enquanto africanos da diáspora? Nem todos nós somos
praticantes de religiões afro-brasileiras, mas nós que somos, estamos olhando
para o ‘ngunzo’ e ‘asé’ presente nas nossas cabeças e na energia de criação que
comungamos com nossos corpos? Sentimos nossa espiritualidade de modo libertador
ou aprisionador? Longe de propor uma solução para nossas relações afetivas
Sobonfu nos alerta para os possíveis males da modernidade e do ocidente nas
nossas relações trazendo a espiritualidade como uma possibilidade de fazermos
reflexões e inflexões acerca das nossas jornadas amorosas, um manifesto de
leveza contra hipervelocidade com que enxergamos nossos irmãos e irmãs, negros
e negras, esquecendo do nosso fundo do fundo de subjetividade.
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Este artigo foi escrito por Issa Mulumba
Um resumo e tanto, parabéns. O livro, escrito por Sobunfu, é fenomenal, digno de leitura para cada uma das irmãs e irmãos negrxs!
ResponderExcluirAprendências novas, uau! quanto conhecimento! Muito obrigada!
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