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Kalunga e o direito: a emergência de um direito inspirado na ética afro-brasileira. Por Sérgio São Bernarco

“Gingar é ir de encontro ao outro!
As organizações políticas, comunitárias e tradicionais no continente africano e na diáspora[1] atestam uma forma costumeira e conciliadora de lidar com os conflitos – em relação à natureza e a sociedade – nos influenciando numa dimensão contingencial da experiência civilizatória africana no Brasil e nos dando um caminho de como articular novas bases ético-jurídicas para pensar o direito numa ótica emancipatória. Observamos, logo, de início, que a tentativa aqui, é tanto mais epistemológica tanto quanto de produção cultural e, que, estas perspectivas serão sempre trazidas como um discurso de origem e não de finalidade.
Os Bacongos, aqueles povos do antigo Reino do Congo que, hoje, estão localizados nas regiões onde se encontram os países: Angola, Congo, Brazaville e Gabão, nos apresentam uma narrativa de mundo e uma consciência cósmica extremamente valiosa para interpretação da realidade dos africanos e seus descendentes em todo o mundo. Esta mandala cosmológica ou o cosmograma Bakongo[2] referencia-se na travessia do Kalunga, como uma linha que atravessa oceanos e continentes além das montanhas do Oeste e permite o diálogo entre os mundos dos vivos e mortos além de outras possibilidades simbólicas que delas se extraem.
Cosmograma Bakongo

No mundo dos espíritos Ku mpemba é onde residem diversas forças que determinam as ações humanas. Este pode ser um pressuposto para pensar o comportamento, os modos de resolução de conflitos e os mecanismos que acionamos para respondermos a muitas das nossas questões de verdade e justiça. Esta proto-narrativa civilizatória nos convida a pensarmos questões contemporâneas sobre humanidade, ética, direito e justiça; já que o direito hegemônico, através de suas lógicas e equações, não consegue responder as aspirações dos novos sujeitos subalternizados da sociedade moderna.
É possível afirmar um direito africano ou afro-brasileiro? Existe um repertório comum que informa e unifica este direito? Este direito pode ser universalizável como pressuposto de justiça a outras comunidades não africanas? Estas são as indagações que proponho tematizar para sugerir a possibilidade de um debate nos campos da antropologia jurídica, da filosofia africana e da filosofia do direito.
René David alerta que a experiência africana se assemelha ao processo assimilacionista romano quando teve que elaborar um jus gentium para reconhecer as culturas e valores dos não-romanos. Entretanto, nos países africanos colonizados abriu-se a uma conformação para um direito ocidental formal, importado, quase que, literalmente, dos países de origem.
O congolês Kunzika dá uma elevada amplitude aos usos dos provérbios Kikongo na vida comunitária e institucional do Congo e ainda nos presenteia com suas possibilidades linguísticas em outras línguas, nada diferindo do que sempre foi apresentado como senso comum teórico eurocêntrico respaldado numa liturgia jurisprudencial de base germano-românica e, mais recentemente, reforçado com a doutrina consuetudinária do Common Law do empirismo anglo-saxônico. Este sistema de referência ou repertório tópico possui forte poder sobre os critérios de resolução dos conflitos, ainda, na contemporaneidade.[3]
As expressões: “mfumu ka dianga ngulu a kutu dimosi ko”, assim traduzida para o português: “o chefe não ouve só por um ouvido” tratando do direito ao contraditório e “mvumbi mvula tembo kina kawene kikanatumunanga” – “a morte é como uma chuvada, ela leva o que encontra”, tratando da isonomia para todos, localizam alguns dos pressupostos ético-jurídicos do costumem da lei e da obediência fundado em elementos naturais, religiosos ou tão somente convencionais praticados há séculos naquele continente, e, em especial, no Brasil.  
Como podemos entender as diversas formas de lidar com os costumes originados do processo civilizatório africano em confronto com o direito germano-românico, fenomenológico, positivista e culturalista do direito brasileiro? As comunidades tradicionais e as referências mais ancestralizadas das nossas experiências comunitárias (Candomblé, Capoeira, Quilombo, Comunidades Tradicionais etc.) dão conta de que os valores e noções de justo têm sempre acompanhado as noções de integração e comunhão com a natureza, uso comunitário e coletivo da propriedade, restituição no lugar de retribuição de pena, famílias extensas etc. 
Nessa travessia do Kalunga, a visão cosmogônica e comunitária dos conceitos de lei e crime dos Bacongos estudados por Fukiao deve ser revisitada à luz dessa moderna tendência de um direito que renasce preservando as autoridades tradicionais africanas na África e na diáspora. Na mesma trajetória, analisaremos, à luz de Ramose e Wiredu, os elementos da cosmovisão Ubuntu, as perspectivas de restauração e equilíbrio como comportamento ético vital e sua relação com os processos de consensualidade exaustiva nessas comunidades.  
A positividade formal do direito resulta injusta e iníqua. Como buscaremos novas invenções originais que respondam às nossas perguntas existenciais e práticas? Temos produzido um sem-número de projetos de extra judicialidade como orientadora de acesso ao direito e à justiça refletida nas propostas de mediação de conflitos e suas diversas abordagens. Experiências, as mais variadas, tem tomado conta da agenda dos órgãos estatais (arbitragens, mediações, mutirões conciliatórios, etc.) e das organizações sociais no Brasil afora como saída para um direito dogmático e elitista que muito pouco nos diz através de seus “provérbios” e “modos de fazer” ético-jurídico. Será que esta potencialidade resolutiva em se equacionar os conflitos no interior da comunidade e sem responsabilizar a pessoa isoladamente nem retirá-lo do seu meio, buscando saídas na coletividade, não é uma tradição africana esquecida pelas novas gerações?   
A Convenção 166 da ONU se apresenta nesse contexto o qual critérios hermenêuticos mais complexos e heterogêneos tiveram que ser adotados pelas cortes internacionais e pelos países do sistema para localizar modos de aplicabilidade de resolução de conflitos preservando-se a autonomia e os costumes das comunidades e povos tradicionais. Nesse aspecto, a área penal foi a que mais teve que se acomodar com os métodos de mediação para o tratamento dos conflitos.
Qual lei aplicar em casos de condutas antissociais nos países colonizados, o common law, o sistema latino, as medidas de legislação de cada localidade ou os costumes?
Um exemplo mais próximo da experiência com os indígenas originários da América Latina nos chama para a leitura sempre ampliada das diversas cargas semiológicas que o conceito de etnicidade exige. No caso da América Latina, os repertórios ancestralizados das diversas etnias se valem de um “capital étnico” poderoso para a afirmação de direitos em nome de uma “potência plebeia”[4] na Bolívia. O autor vaticina que “fica bastante claro que, a Bolívia é, a rigor, uma coexistência de várias nacionalidades e culturas regionais sobrepostas ou moderadamente articuladas”. A existência de uma sociedade multiétnica impõe que o modelo de estado e de sua base jurídica seja também pluralista. Esta possibilidade foi materializada através da carta constitucional binacional na Bolívia que adota critérios de autonomia política local, equidade, proporcionalidade, solidariedade etc. O reconhecimento de uma comunidade política multinacional e multicultural pode caracterizar-se enquanto referência bastante proveitosa para os nossos debates e em nome de uma pluralidade jurídica pode ser experimentada, também, no Brasil.
O tema da diversidade étnico-racial no sistema normativo brasileiro é algo novo no debate sobre as juridicidades. Podemos encontrar fontes esparsas, nada muito elaborado ou aprofundado no repertório livresco nas livrarias e bibliotecas. Entre estas poucas obras quero referir-me ao livro Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial, organizado por Flávia Piovesan e Douglas Martins (2006), através do Instituto Pro Bono[5] que pode ser considerado um estudo inaugural sobre o direito à igualdade étnico-racial, o confronto a uma suposta norma jurídica neutra e universal e a necessidade de uma cultura jurídica pluri-normativa.
Nesse momento diversas mudanças estão ocorrendo nos países africanos e em especial, no Brasil. Todos se preparam para o futuro e buscam modelos que combinam direito moderno e direito tradicional. Este é o desafio do século XXI para os africanos e a diáspora. A Cosmovisão afro-brasileira proporcionada pelo “mundo da vida” (moralidade, eticidade e juridicidade) embora subalternizada e criminalizada pode inspirar elementos de uma nova juridicidade original emancipatória.
Nessa travessia de avanços e reversibilidades, o cosmograma Bacongo pode nos servir de base para compreendermos nossa realidade afro-brasileira como pressuposto para pensar o direito. Nesse caminho, cabe a construção de uma nova cultura a qual funde uma filosofia jurídica de natureza descolonial, original e emancipatória para, enfim, vislumbrarmos novos caminhos para o Kalunga!
 Sérgio São Bernardo é Professor de Filosofia do Direito da Uneb-Ba, Mestre em Direito-UNB, Doutorando do Programa Difusão do Conhecimento-UFBA.

Referências
[1] Aqui, nos referimos às grandes civilizações africanas anteriores ao processo colonizatório e que, ainda, influenciam modos peculiares de instituir valores religiosos, morais e éticos no Continente e na diáspora.
[2] Clyde W. Ford nos apresenta pelo menos seis dimensões interpretativas da cosmologia Congo traduzidas na imagem do Kalunga: a primeira um diagrama com uma elipse que se inicia a leste e representa o nascimento, depois ascendência e maturidade ao norte, logo depois ao poente a morte por fim, ao sul a existência no outro mundo, o renascimento. Ao centro da Elipse estão as aguas míticas do Kalunga; que divide as águas do mundo comum (Ntoto) e a terra dos mortos (Mputu). Estas águas tanto simbolizam uma travessia tanto quanto uma barreira; a segunda- lembra o transporte dos negros escravizados através do Atlântico e corresponde à viagem mítica através da montanha do oeste e do herói que retorna ao seu lar; a terceira, o kalunga seria o eixo do mundo, o desenho do mundo no chão, uma mandala onde se encontra o ponto absoluto da eternidade, também, pode ser associada a cruz cristã,  a porta do sol por onde desce a divindade renascida do céu; a quarta, a dimensão feminina, a matriz da criação, o útero cósmico, localizado na parte inferior do desenho e que está associada à morte consagrando a desintegração do círculo sagrado e do Útero Cósmico; a quinta onde o Kalunga é apresentado por pares de opostos, esta é mais conhecida das leituras dicotômicas de leitura do mundo; a sexta, o cosmograma representa linhas de movimento e renascimento de vida e progressão de consciência, a suástica aqui entendida como sinal auspicioso para a busca do divino dentro de si, por fim Ford nos fala da forte presença desses desenhos míticos no Caribe, Cuba, Nova York e na América do Sul, inscritos em vasos rituais (prendas) e em amuletos sagrados. (Clyde Ford, O Herói com Rosto Africano, 1999, pags.268/275).
[3] Ver II Encontro Nacional sobre as Autoridades Tradicionais em Angola, IFAL, Instituto de Formação da Administração Local, X Lex Data: Luanda, 2007.
[4] Ver Àlvaro Garcia Linera e o livro A Potência Plebeia: ação coletiva e identidades indígenas, operárias e populares na Bolívia; organização e prefácio de Pablo Sefanoni, tradução Mousar Benedito e Igor Ojeda- São Paulo: Boitempo, 2010.
[5] Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial, organizado por Flávia Piovesan e Douglas Martins, através do Instituto Pro Bono, 2002.
ALTUNA, Raul Ruiz de Asua, Cultura Tradicional Banto, Ed Paulinas, 2006. 
GARCIA LINERA, Álvaro, a Potência Plebeia: ação coletiva e identidades indígenas, operárias e populares na Bolívia; organização e prefácio de Pablo Sefanoni, tradução Mousar Benedito e Igor Ojeda – São Paulo: Boitempo, 2010.
DAVID, René, os grandes sistemas do direito contemporâneo, tradução: Hermínio A. Carvalho, – 4ª ed.-São Paulo: Martins Fontes, 2002. 
FU-KIAU Bunseki, African Cosmology of the Bantu-Kongo: Tying the Spiritual Knot, Principles of Life & Living, Paperback, 2014 
MOGOBE RAMOSE, Globalização e Ubuntu. In: B. S. Santos; M. P. Meneses. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010, p. 211-213.
OLIVEIRA, Eduardo D.A, Ancestralidade na Encruzilhada: dinâmica de uma tradição inventada. Dissertação de Mestrado. Curitiba: UFPR, 2001.
Cosmovisão Africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente. Fortaleza: LCR, 2003.
PIOVESAN, Flávia; MARTINS DE SOUZA, Douglas (Coords.). Ordem jurídica e igualdade étnico-racial. Brasília: Seppir, 2006.
SÃO BERNARDO, Sérgio, Xangô e Thémis – estudos sobre filosofia, direito e racismo. Salvador: J.Andrade, 2016.
SICA, Leonardo, Bases para o modelo brasileiro de Justiça Restaurativa. Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, N. 12, 411-447, 2009.
KWASI, Wiredu, Democracia e consenso na política tradicional africana. Tradução para uso didático de WIREDU, KWasi. Democracy and Consensus in african Politics.A plea for a Non-Party Polity. 
Polylog: Forum for Intercultural Philosophy. (2000), disponível em http://filosofia-africana.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/kwasi_wiredu_democracia_e_consenso_na_pol%C3%ADtica_tradicional_africana.pdf. Por Marcio Moreira Viotti.
KUNZIKA, Emanuel, Dicionário de Provérbios Kikongo traduzidos e explicados em português, francês e inglês. Luanda: Editorial Nzila, 2008.
II Encontro Nacional sobre as Autoridades Tradicionais em Angola, IFAL, Instituto de Formação da Administração Local, X Lex Data: Luanda, 2007.

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