Um mergulho poético na ancestralidade do ritual afrobrasileiro da Umbanda, na Tenda de Santa Bárbara, Comunidade Quilombola em Lima Campos, Maranhão.
Por Joaquim Cantanhêde.
Maria Raimunda, da Tenda Cinco Chagas de Cristo (Foto:
Joaquim Cantanhêde)
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Já passava de meia-noite. O
silêncio da madrugada logo seria dissipado. Em Morada Nova, comunidade
quilombola localizada no município de Lima Campos (MA), o dia foi longo. Embarcamos
numa van apertada, dividida por gente, flores e outros objetos. Todos estes
convergindo para um momento. Espaço de sobra mesmo só para o bolo sobre as pernas de Delzuita Pereira da Silva.
Mulheres
preparam o cuxá, prato típico do Maranhão (Foto: Joaquim Cantanhêde)
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Antes
da festa, o salão já preparado divide sua sacralidade com a cozinha. Há quem
corte a carne sob os olhares atentos dos cães que circundam a mesa. Não pode
faltar cuxá, prato típico do Maranhão. Para os mais jovens a missão de cortar a
lenha que mantem os fornos de barro acesos. Para todos o que se envolvem a
alegria da manter viva a prática da fé que tem como gênese a trajetória dos
negros no Brasil. Nas calçadas, por sua vez, as mulheres embelezam as unhas dos
pés, das mãos, entre risos e cochichos.
O movimento das saia se destaca evidenciando detalhes (Foto: Joaquim Cantanhêde)
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No
terreiro dedicado a Santa Bárbara, o vermelho impera. Vazio, é como qualquer
outro espaço de vivência religiosa sob a perspectiva da Umbanda. Horas depois, a
fila formada na entrada da tenda, composta por anciães e anciãos, adultos,
jovens e crianças, evidenciaria a singularidade do ritual, cujo simbolismo acha
nos laços familiares seu fio condutor. Poucas vezes na vida vi tanta fé, tantas
pessoas com certeza de si e de seu lugar no mundo. Hoje, na vereda do
jornalismo, deparo-me com as maiores lições de minha vida. Longe dos grandes
centros, distante da vida urbana com seus templos erigidos, adentro o terreiro
de piso verde, ali ouço, vejo, escrevo e aprendo.
Adeptos da Umbanda aguardam o início do ritual (Foto: Joaquim Cantanhêde)
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Por
volta de uma hora da madrugada o atabaque se fez ouvir, foi-se o sono da espera
iniciada na tarde e que adentrou a noite. Daí por diante ela foi pequena. No
centro o mastro testemunha a cadência, a dança, o humano e o sagrado separados
por uma linha cada vez mais tênue. É difícil contabilizar quantas voltas foram
dadas ao seu entono até o fim do ritual.
Os movimentos são intensos, regidos pela cadência dos
tambores (Foto: Joaquim Cantanhêde)
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Em
um ambiente onde os trajes brancos prevalecem o terno vermelho que veste pai Zé
William se destaca. Carrega na cabeça uma coroa, não tarda Colin Maneiro, a
quem incorpora, se manifesta. A reverência vai além do rito. Trata-se de uma
figura que exerce certo protagonismo na comunidade. Para onde quer que se olhe
haverá alguém que mantenha vínculo parental com Zé William. É possível ver com
muita nitidez os pilares que constituem as vivências comunitárias na visão do
sociólogo alemão Ferdinand Tonnies (1995, p. 252)[1]:
a família, a terra e nesse contexto, a tenda como prática comunitária da
espiritualidade.
Iolete Santos, incorpora Pena Verde (Foto: Joaquim
Cantanhêde)
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A noite dividiu com o dia a fé, a força, o
sobrenatural. A série fotográfica “Tenda Santa Bárbara: o humano e o sagrado”
traz recortes visuais desse encontro entre o visível e o invisível, a religião
como resistência, espaço de vínculos e protagonismo social. Valoriza o
movimento, o envolvimento, as feições e as cores. É também um convite para a
tolerância, a contemplação de uma prática religiosa cujo simbolismo não se
restringe ao diálogo sobre espiritualidade. Em um país marcado pela
intolerância religiosa, crer ao seu modo, com outras perspectivas é uma ato
político.
Weverton Vinicius e Wendell Santos, a fé como herança . (Foto: Joaquim Cantanhêde) |
Conheça mais sobre o trabalho de Joaquim Cantanhêde no site:
[1] TÖNNIES, Ferdinand. Comunidade e sociedade. In: MIRANDA, Orlando de. Para ler Ferdinand
Tönnies. 1. ed. São Paulo: EdUSP, 1995a.
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