Hoje não se entende a política sem olhar para as mudanças climáticas; a população mais pobre e negra é a que vive em áreas com maior risco de catástrofes ambientais
Atualmente vivo no Alto da Sereia, bairro antigo da cidade de Salvador, uma periferia na área nobre da cidade. A comunidade fica a cerca de um quilômetro do palácio onde reside o governador do estado da Bahia. Apesar de não ser frequente, casas já foram invadidas pela polícia sem ordem judicial, pessoas já foram assassinadas; em maio, a casa de um vizinho desabou com a tempestade. Tem semana em que a primeira tarefa do dia consiste em acordar cedo e pegar baldes de água nas torneiras que trazem água da rua, pois sabemos que ela vai faltar o resto do dia, ficará uma semana sem aparecer ou não terá pressão para chegar até a caixa. Pelo estigma, alguns prestadores de serviço se recusam a subir o morro com medo. Contraditoriamente, o morro que habitamos é dividido por um muro. Do lado de lá, tudo parece funcionar bem com as mansões e o restaurante japonês frequentado pelos endinheirados de Salvador. O entorno do nosso bairro, que tem vista privilegiada para o mar, está sofrendo um processo de gentrificação com a construção de condomínios para a classe média alta com suas duas garagens por apartamento. Faz alguns anos que concessionárias de carro de luxo se instalaram na entrada das escadarias que dão acesso ao bairro. Modelo classe A: Jaguar, Land Rover, cujo valor, sem dúvida, é superior ao PIB per capita da favela inteira. As disparidades entre nossos mundos são gritantes e visíveis, nossos mundos não são compartilhados.
Há um mês, era noite, chovia forte e eu já estava deitado lendo o novo livro de Bruno Latour (Down to Earth: Politics in the New Climate Regime. Polity Press: Cambridge, 2018). No ensaio, Latour defende a tese de que não podemos entender a política nos últimos 50 anos sem colocar no centro a questão das mudanças climáticas. Quando dei por mim, a água estava descendo da laje, vinda do quarto da amiga que me hospeda. A força da correnteza desceu feito cachoeira para o meu quarto, que rapidamente foi tomado por dez centímetros de água. A chuva parecia me dizer que ela precisava daquele espaço para correr. Nos últimos anos, vivendo aqui no alto do morro à beira-mar, tive sonhos e mirações da água salgada subindo pelo penhasco até chegar em nossas casas como uma grande tsunami. Pelos cálculos dos cientistas, em 2100 o nível dos oceanos poderá subir até 4 metros, fazendo desaparecer bairros, cidades e até países inteiros.
Gaia é o nome pelo qual a filósofa Isabelle Stengers chamou essa força que foi desperta pela ação desenfreada do ser humano no planeta e que parece se revoltar contra nós. Chamada de Antropoceno por alguns cientistas do clima, a antropóloga Donna Haraway gosta de pensar em outras possibilidades de nomes para designar essa época. Afinal, não é possível dizer que a mudança climática seja responsabilidade de todos os seres humanos. Então Haraway vai vislumbrar nomes como Capitaloceno, para demarcar uma era marcada pelos efeitos do capitalismo que devasta nosso meio ambiente, e também Chthuluceno, para designar essa época futura na qual humanos e não humanos precisarão articular alianças inimagináveis para sobreviver aos tempos que se desenham.
A construção do mundo comum depende do fim de privilégios e de um basta na produção desenfreada em busca do lucro. Nem a frequência de eventos ligados ao aquecimento global parece sensibilizar essa gente. No início do ano, o Rio de Janeiro testemunhou acontecimentos que se tornarão comuns com mudanças bruscas nos regimes de precipitação, com períodos de seca e chuva radicais. A World Without Clouds, artigo de Natalie Wolchover na Quanta Magazine, relatou como pesquisas recentes apontam que alguns tipos de nuvens, essenciais no regime climático, podem desaparecer no nosso século. A cada ano contabilizamos acontecimentos ligados ao clima como o incêndio em Portugal e na Califórnia, os mais de 1,5 mil mortos na França com a onda de calor em 2018, ou a crise hídrica em São Paulo que deixou principalmente as periferias sem água (enquanto a Sabesp faturava seus milhões na bolsa de valores de Nova Iorque). A situação climática do planeta se agrava, mas aqueles que detêm poder de decisão continuam sem nenhum senso de responsabilidade ou preferem simplesmente fingir que nada está acontecendo ou, o que é pior, negar os fatos e as pesquisas científicas.
O negacionismo sempre rondou o mundo, principalmente no que diz respeito aos assuntos relacionados a História e a Ciência. O negacionismo é contagiante, encontra adesão de pessoas que vivem fechadas em seu mundo e atinge em cheio a discussão sobre o clima. Ele reduz a percepção de que a mudança climática vai atingir o globo todo. Discutir o clima significa pensar o planeta, discutir a energia que gastamos, a maneira como produzimos, o uso do combustível fóssil, a existência de conflitos armados liderados pelos EUA em função do petróleo, a maneira de ocupação nos territórios e os mais diversos tipos de desigualdade e discriminação. Na luta dos negacionistas contra os cientistas do clima há um sentimento pesado que mistura ressentimento e desinformação.
A mudança climática, como consequência da modernidade-colonialidade, transversal e multidisciplinar, também estabelecerá laços com suas ferramentas históricas como o racismo e o sexismo (vislumbro reflexões de como as modificações na natureza têm um caráter heterocentrado, pensando nos bandeirantes, nos cortes das árvores e em países no qual as mulheres não podiam dirigir). Nos países do Sul Global e em muitos do Norte, é a população mais pobre e negra que vive em áreas com maior risco de catástrofes ambientais. Aqui em Salvador, é em Valéria, Cajazeiras e Cabula que as casas e lajes desabam quando tem tempestade. Quem se importa? Aqui mesmo no morro onde moro, na parte rica, do lado de lá do muro, as casas nunca caem e duvido que falte água. Até 2100, com o cenário climático que se desenha, os nossos vizinhos ricos e seus herdeiros poderão se deslocar para áreas seguras, enquanto os populares continuarão sofrendo as consequências.
Todos devem se lembrar das imagens do furacão Katrina, em 2005, quando os bairros com população majoritariamente negra estamparam as telas de TV, revelando uma disparidade social dos Estados Unidos poucas vezes divulgada para o mundo. Parte da população rica e branca do sul abandonou a cidade enquanto os bairros populares sofriam com inundações e destruições. Pior, durante o socorro às vítimas, as equipes deixavam os mais pobres, afrodescendentes, se afogarem: “(…) a corporificação da cultura que havia tornado possíveis os horrores do furacão Katrina e deixara os moradores mais pobres de Nova Orleans se afogarem (…) ele fora treinado para simplesmente não enxergar os habitantes majoritariamente afrodescendentes de Nova Orleans…”. Dentre tantas narrações impressionantes, outro trecho do livro de Naomi Klein (Doutrina do Choque – a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018), demonstra como, antes do furacão Katrina, o conselho de educação administrava 123 escolas públicas e depois do furacão governava apenas quatro. Os professores eram engajados, a comunidade ativa. As escolas comunitárias de New Orleans destruídas foram reconstruídas pelo governo norte-americano, mas “vendidas” para a iniciativa privada que expulsou os conselhos. Klein demonstra como o dinheiro para as vítimas da enchente eram desviado para erradicar o sistema público e privatizar o setor da educação. O caso é emblemático para compreender a “doutrina do choque”, um modo de operar do capitalismo de desastre que também está conectado às questões ambientais. Klein afirma que o enfrentamento das situações de emergência é um mercado ascendente bastante aquecido. Aproveitando a população em choque, implementam o neoliberalismo gerando lucro para os donos do capital.
Voltando a Latour, ele identifica um modus operandi perverso da elite no que diz respeito ao clima e para isso utiliza o exemplo do naufrágio do Titanic. Naquele acontecimento, a classe abastada, percebendo o naufrágio, pega os botes salva-vidas, junta a orquestra (para não ouvir os sinais de alerta para os que ficaram) e cria sua rota de fuga, deixando os outros para trás. Com isso, Latour discorre sobre o desafio de construção de um mundo comum.
Tema antigo para as ciências sociais e políticas, a construção do comum depende de muitos passos, entre eles cuidar de uma ferida que foi aberta desde a implantação da modernidade a partir da luta entre o local e o global. Latour acredita que esses dois vetores opostos criaram um terceiro vetor, o da impossibilidade de qualquer acordo, no qual só há sinais, ferida de uma batalha que opuseram duas visões de mundo. A criação do comum ficou impossível a partir dessa luta permeada por questões identitárias à “esquerda e a direita”, termos que se relativizam e se confundem quando olhamos sob a perspectiva do clima. Progressistas e reacionários, campos que não conversam, estariam ambos errados: nenhum deles leva em conta como registrar, manter e valorizar um número máximo de formas alternativas de pertencer ao mundo. Como podemos tranquilizar aqueles que veem salvação nas identidades nacionais, étnicas, de gênero, ou como organizar uma vida coletiva nesse cenário de destruição e desesperança? Latour sugere que devemos voltar à Terra. Aterrar.
Um dos pressupostos da colonialidade seria essa perda de território, uma perda de si, em looping. Nesse sentido, para mim, pensar a diáspora africana como marco de uma nova fase da modernidade equivale a pensar de que forma novas escravizações se desenham no neoliberalismo, a exemplo dos costureiros estrangeiros escravizados pelo mercado da roupa em São Paulo ou no Vietnam. A crise da imigração é apenas a continuidade de uma maneira de agir que teve início com as grandes navegações e, hoje, devemos refletir quantos desses deslocamentos não têm relação direta com o clima. A alteração climática provocará cada vez mais deslocamentos e forçará as pessoas a não serem bem vindas nas fronteiras. Precisaríamos de cinco planetas caso as ideias e pressupostos da modernidade tivessem que ser estendidos a todos os seres humanos e, como diz Latour, “não podemos acreditar naqueles que defendem a modernidade para todos”.
Isso me levou a pensar que, por hora, precisamos saber quem são nossos aliados e lutar pela garantia da vida, mas parece que esse objetivo encontra uma forte barreira pela frente, já que o neoliberalismo é um mecanismo político que depende do enfraquecimento da participação popular, do sequestro do Estado, do consumo desenfreado, da guerra, da morte, da doença, da paranoia, da destruição geral e irrestrita de qualquer alternativa que não esteja alinhada ao mercado.
A construção do mundo comum depende de uma equação que supere o trauma da implantação da modernidade e reconheça outros modos de vida. As elites têm fobia do mundo comum e já não querem compartilhar mais nada. Como declarou Trump, “não existe mudança climática nos Estados Unidos” (como se fosse possível separar esse país do Globo). O pensamento de Latour revela como a eleição de Trump é um acontecimento, uma inovação política que explica a criação de um quarto vetor: o dos “fora do mundo”, construído em oposição ao terceiro vetor. É a primeira vez na história que a negação da mudança climática define a orientação da vida pública de uma nação. “Não é pós verdade, é pós política, política sem objetivo”, afirma Latour. O quarto vetor congrega os que não acreditam no mundo, os obscurantistas e negacionistas do clima. A atual elite, sabendo que o mundo se afunda, preferiu viver os últimos 40 anos em suas bolhas, esbanjando consumo. O movimento obscurantista, messiânico, acusa os cientistas de serem apocalípticos e nega os fatos. O que os obscurantistas querem esconder é que uma hecatombe termoambiental só poderia ser evitada com medidas radicais para que a temperatura do planeta não suba entre 1,5 e 2 graus nas próximas décadas, o que exigiria um giro radical de toda a política mundial dos estados nação.
Pelos dados do cientistas do IPCC, o painel de mudança climática da ONU, instituição que reúne dezenas de cientistas de todo o globo, só seria possível impedir isso com ações concretas que atingiriam em cheio o capitalismo. Mas, enquanto faz questão de minar a credibilidade de instituições e cientista do clima, a elite, apoiando essa gente que ascendeu ao poder em diversos lugares do mundo, sobe no seu barco para viver mais quarenta anos e que se dane o futuro. Que importa que o mundo se acabe, continuaremos agindo assim, danem-se as gerações futuras.
Perceber a questão climática no centro da geopolítica mundial é fundamental para garantir o futuro e a luta pelo comum. E, para pensar na construção desse mundo compartilhado, em um planeta vivível, concordo com Latour: precisaremos nos voltar para a Terra. Make The Earth Great Again!
(*) Marcelo de Trói é jornalista, mestre em Cultura e Sociedade e doutorando no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (Pós Cultura) da Universidade Federal da Bahia.
Publicado originalmente
https://ponte.org/artigo-faca-a-terra-grande-de-novo/
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