Xan Marçal: Poéticas, Encantarias e Ancestralidade de um Parauára |
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Mo: Estamos aqui na Rádio Ki.Anda, invadindo a casa do multi-artista Xan Marçall (paraense radicado na Bahia) e eu nem sei por onde começar, porque Xan Marçall nos trás tantas histórias ...
Xan: Eu sou Xan Marçall, sou Parauára, de Belém do Pará. Nasci dia 28 de fevereiro de 1986, sou pisciana e filha de Alda Barros de Oliveira e Pedro Paulo Pires Moura.
Sou do Pará e tenho toda uma ligação mística com a história do nascer, porque acho que as pessoas antes de nascer já escolheram nascer nesse lugar. Então ... antes da gente encarnar a gente já tinha consciência de todo trajeto que a gente queria percorrer nessa vida. É como se fosse uma espécie de Déja Vu, sabe? Não sei se estou falando loucura, sabe? Mas é como se a gente já tivesse visto tudo o que ia acontecer … na verdade, existem também as possibilidades de tu escreveres o teu caminho a partir de uma coisa que já foi vista, entendeu? Mas eu tenho impressão de que a gente é o total, então a gente já viu tudo, todas as possibilidades, só que a gente não tem consciência disso. Eu acho que a gente tem esse insight espiritual, essa visão espiritual de que a gente tem a visão de todas as possibilidades que a gente pode assumir na vida, só que quando a gente tá aqui nesse momento carne, osso, físico, nessa fisicalidade a gente não tem mais essa consciência, então a gente acha que o fato da gente ter escolhido um caminho foi também algo que tivesse fora de um acontecimento que a gente tivesse ciência, entendeu? Eu acho que a gente é muito desatento, descuidado … Nem sei porquê eu to falando tudo isso…
Mo: Tem a ver, porque tudo isso se conecta com o ponto inicial do nosso encontro, que é a questão da ancestralidade. Parece que tudo volta a esse ponto…
Xan: Exato. Parece que histórias de familiares se repetem na nossa vida. Tipo de traumas que nossos avós, bisavós, pais, mães não conseguiram resolver e que reverbera de alguma forma na nossa vida também. Aí tem gente que vai falar que é memória e que isso também tá na memória do dna também, que a gente acaba incorporando. Então todas essas impressões, percepções, experiências que nossos ancestrais passaram estão também na nossa história agora, estão no nosso sangue, estão nas informações genéticas, moleculares, na nossa vida.
Mo: Quais são as suas maiores inquietações existenciais?
Xan: Minhas inquietações são várias. Por exemplo, me inquietam as histórias que não foram contadas para uma grande parcela da sociedade e que eu tenho acesso, então eu quero contar essas histórias porque eu quero que as pessoas conheçam essa outra lógica, este outro imaginário, outra forma de se relacionar com o mundo, de convívio, que seria uma forma de vida mais democrática, mais respeituosa, sabe? Eu também tô nesse processo de entendimento, sabe? De respeito à natureza, de cultuar, respeitar a natureza, respeitar mais as pessoas … acho que essa é uma das coisas que eu tenho vontade de falar.
Outras inquietações perpassam pelo imaginário, de psicologia, de arquétipo, por exemplo, tem coisas que fazem sentido para mim agora justamente porque eu acessei histórias que não permitiram que eu tivesse contato, mas que em algum momento da minha vida eu acessei. Por exemplo: quando eu era criança e me via uma criança totalmente diferente das outras crianças ou dos outros menininhos. Eu não era diferente porque eu era especial. Eu era diferente porque eu não era o mesmo modelo de todos os meus amigos e era uma merda. Enfim, vários intercruzamentos que passaram em minha vida e essa coisa do nome também é interessante. Porque eu comecei a pensar que o nome que alguém te dá é o nome como essa pessoa construiu que tu fosses. É o nome que seus pais ou seus avós construíram essa imagem dessa pessoa. Então acho que é interessante que a gente passe por algum batismo em algum momento de nossa vida que a gente re-signifique a nossa existência e dê um outro nome pra gente.
Mo: E você passou por isso, né? Você quer falar um pouco sobre seu nome?
Xan: A história do Xan Marçall foi uma coisa que eu fui exercitando aos poucos. Primeiramente, a partir de assinar uns trabalhos de ilustração como Xan Marçall. Fazendo referência a uma cantora, que tem uma grafia totalmente diferente da grafia que eu escrevo, que mais se aproxima daquilo que seria uma fonética indígena, apesar de que eu não sei se eu poderia usar essa palavra. Aí eu descobri que Xan é o nome de um pássaro, o pica pau, que é conhecido como "Xan Xan". Que cruzamento! Me encontrei com este encantado pássaro e antes disso eu tinha entendido que meu totem é uma arara vermelha, uma ave.
Mo: Como você descobriu o seu totem?
Xan: Primeiro, foi num sonho. Não sei também se é uma imagem arquetípica, mas a imagem era de que meu corpo estava morto e tinha uma ave me picando e era uma arara. E era uma arara que eu via há muito tempo em Belém. Porque em Belém no bosque e no Museu da Residência viviam araras soltas, vermelhas vermelhas vermelhas, e super dóceis. Aí essa imagem me acompanha. Pode ser tudo invenção, mas é uma imagem que me acompanha. Eu não sei se é exatamente um totem, mas é um animal que me acompanha, um animal de poder.
Depois que eu fui pro México eu descobri um pássaro também ligado a divindades sagradas, a ritos sagrados. E em várias etnias do Brasil, da América do Norte até a América do Sul, a arara vermelha tá ligada a rituais de morte e renascimento. As penas vermelhas delas serviam para afastar toda a energia negativa e eu pensei: "Veado! Tá tudo se conectando!"
Mo: Você tem um trabalho profundo de investigação sobre a morte, né?
Xan: Pois é. Eu já pesquisava esses caminhos da morte e fui descobrir essas coisas sobre as araras … aí mana, todas as coisas começaram a fazer sentido pra mim. Eu me lembro que quando tinha 16 anos eu comprei um cocar em Belém, de arara vermelha e um cordão com penas de arara vermelha e sementes de mará mará. Incrível, porque foi antes de eu começar a ter todas essas informações … Eu adoraria ter uma arara vermelha … Depois fui descobrindo várias coisas sobre as araras. Na umbanda, na encantaria, a arara é a representação de uma entidade, uma mulher que se transforma em uma arara. Então as coisas estão se conectando … Tem gente que pode falar "A bicha tá muito mística", mas são conexões que eu vou fazendo e vai fazendo sentido na minha vida.
Mo: Vai fazendo sentido porque você é um caboclo, né, Xan Marçal?
Xan: Mana, eu sou, porque eu sou neto de caboclo, bisneto de caboclo, então eu acho que eu tenho assumido cada vez mais isso, só que ainda é muito estranho eu falar sobre isso, sobretudo porque existe um imaginário sobre o que é ser caboclo, que foi difundido e, pelas questões que a gente tem debatido na contemporaneidade sobre a afirmação da raça, da etnia, do gênero, então … eu sou mestiço e o caboclo é, sobretudo, um mestiço.
Mo: Ontem eu estava com você quando alguém te falou que para você ser índio, você tem que ter uns pontos de melanina a mais na pele. Essa fala talvez reflita um pouco isso que você esta falando … como você tem trabalhado isso?
Xan: Então, segundo algumas leituras de antropólogos que vão lá na origem da palavra caboclo, alguns defendem que caboclo vem de ka'á bok, aquele que vem do mato, em tupi. Então, esse termo designava a priori as pessoas que viviam em uma região não urbana, que naquela época, eram pessoas indígenas que viviam ao redor da cidade. Eu tô pegando a experiência do Pará, da Amazônia, de um texto que eu li. Segundo estes antropólogos, algumas etnias designavam outras etnias como ka'á bok, aquele que vem do mato. Só que outros autores foram falar que caboclo queria dizer a miscigenação do branco com o nativo, os ancestros de Pindorama, enfim … não sei se essas são as palavras certas, mas pelo menos, são palavras que eu tento me aproximar melhor, enfim …
Mo: E no seu próprio conceito?
Xan: Para mim os dois são interessantes, porque de fato eu venho de uma ancestralidade paterna que eu estou re-significando agora porque tem uma relação de afeto estranha, distante e de histórias de violências e violações dentro desta família e eu acho que e tudo uma questão de não reconhecimento de sua história ancestral, de sua força, seu potencial… então acho que Ka'á bok me dá uma ideia interessante, já que parte da minha ancestralidade paterna veio do mato, nativos. Claro que tem portugueses também na família do meu pai. Mas tem indígenas numa escala de ancestralidade ascendente muito próximas, que não tá há 400 anos … mas que tá há 100, 80 anos atrás. Então é muito novo. E o caboclo me interessa porque eu tenho a pele clara, mas eu sou descendente de nativos da Amazônia. Então, eu posso entender que eu faço parte de uma linhagem de caboclos, também. Ou de uma linhagem de nativos da Amazônia porque a história da minha família é muito recente. Na verdade, eu tenho esse elo que ainda não se perdeu.
Mo: E sua família tem essa consciência?
Xan: Tem a consciência, mas é uma consciência … Meu avô Macaco, se tu visse meu avô … ele tinha uma cara de um pajezão … tinha uma carrancona … e claro que ele tinha essa consciência. Eu ouvia ele dizer "É caboclo! Num sei quem é caboclo!" Tem esse linguajar muito próprio em Belém, de alguns senhores, mais velhos, a galera mais nova está perdendo "Ê caboclo! Eu sou caboclo, me respeite!" . Eu ouvi isso! Do meu avô, dos meus tios mais velhos, uns cabocão assim, sabe? E aí tem a família da minha mãe, também, mas a linhagem da família da minha mãe é mais uma coisa portuguesa. Eu tenho a impressão de que tem gente que veio do oriente. Que eu acho necessário também eu falar dessa parte da minha mãe, que quase que eu não falo, sabe? Minha avó fala que minha bisavó Aurea falava com os desencarnados … Então, toda a minha trajetória de vida e a trajetória de meus antepassados tem essa experiência do místico, do sacro, do simbólico, do representativo, do sensível. Da cosmopercepção, só que o cotidiano, a contemporaneidade, com o que acontece na vida na cidade, as coisas vão se perdendo, e vão se perdendo cada vez mais. Na minha infância, na década de 90, eu ainda era uma pessoa muito curiosa por saber coisas da minha avó e dos meus tios, mas às vezes eu percebo que as crianças hoje não estão mais interessadas em saber histórias antigas.
Mo: E você é um contador de histórias, né? Como você faz essa ponte entre as encantarias, as suas influências e raízes e as histórias que você conta?
Xan: A minha vida são minhas histórias. Para mim as coisas só fazem sentido enquanto coisas que me atravessam, filmes, literaturas, imagens … se tenho algum sentimento com aquilo que tá sendo falado, sendo lido. Mas eu preciso exercitá-las na ação. Acho que isso tem muito a ver também com o fato de eu ser uma pessoa que antes de fazer teatro, sempre quis vivenciar possibilidades de existência. Desde que estas possibilidades de existências me permitissem um exercício de liberdade e transbordamento. Voltando a esta palavra TRANS, daquilo que me foi imposto enquanto pessoa, enquanto ser no mundo, então por que eu não posso usar um lenço na cabeça se eu sou mulher? Por que eu não posso ser mulher ? Por que eu não posso ser bicha? Por que eu não posso ser um tatu bola? Uma arara vermelha? Uma arara piranga quando eu quiser ser? Por que eu não posso adornar o meu corpo? Por que eu não posso dar um sentido estético pra minha vida, pro meu corpo? Então, acho que as coisas vão também se encontrando com essas minhas querências, sabe? E elas fazem sentido pra mim. Eu acredito que estou numa fase de transbordamento daquilo que se compreende enquanto um gênero binário, entre ser homem e ser mulher. E quando eu paro para pensar isso sempre me acompanhou, sempre. Mas por alguns motivos de acessibildade eu acessei um gênero que talvez correspondesse mais a uma norma que tivesse mais a ver com o meu orgão genital e aquilo que foi criado e imaginado de papel masculino que eu deveria desenvolver. Mas eu me senti muitas vezes extremamente reprimido quando eu era criança e essas coisas fazem muito mais sentido para mim agora porque a gente tá falando mais disso. E as bichas estão se degladiando por coisas bobas e segregado cada vez mais e isso tem me irritado tanto … não são só as bichas, são os movimentos todos, sabe? De periferia, de lugares considerados marginais. A gente tá se degladiando por questões tão bestas, sabe? A gente tá no mesmo corre e nos mesmos enfrentamentos. Cada um com suas dores e suas frequências de loucuras, de entrega pra vida, pra existência, mas nós somos as fudidas e os inimigos são outros. E as bichas muitas que eu conheço nesses corres de Salvador, de Belém, tão cada uma se querendo se degladiar, porque quer fazer a melhor performance … Não é, gente! é a vida! Vamos nos ajudar umas às outras. Eu acho que isso é o mais importante. É o momento que eu estou acessando porque essa literatura me foi possibilitada, por pessoas que estudaram isso e difundiram e reverberaram esse discurso, que chegou para mim só agora, aos 31 anos, enquanto americano latino, sul americano, Nortista, Parauára, Amazônida, agora nordestina. Então de fato as informações que chegam no Rio, São Paulo, não são as mesmas informações que chegam ao mesmo tempo aqui em Salvador, em Belem, ou no Acre… em comunidades que vivem na fronteira entre o Brasil e a Colombia. Quando a gente vai ver essas historias dos mitos … Hermes e Afrodite, do ciborgue, do andrógeno, os mitos de algumas etnias indígenas, a gente vai ver que estas historias sempre existiram e eles não nos deixaram ter acesso e se a gente tivesse acesso desde que éramos crianças, talvez eu não tinha sido uma criança que sofresse tanto bullyng por ser uma criança diferente. Eu não era uma criança que me travestia, mas eu era uma criança que tinha uma fala que era diferente dos outros amigos, eu tinha uma gestualidade, uma corporeidade diferente dos meus amigos que eram considerados machos dentro de um padrão do que é ser macho, do que é ser homem. Eu era a bichinha, mulherzinha … minha mãe ate me falou: "Eu nunca soube disso". E eu falei "Claro, mãe, eu nunca quis te falar sobre isso … essas coisas eu resolvia na escola". E eu ainda passava por esse tipo de coisa dentro de casa, porque meu pai foi um opressor nesse sentido também. Independente de todas as conquistas e toda a trajetória dele enquanto um rapaz negro, de periferia, filho de caboclo, neto de índio, então ele reproduziu esse sistema machista patriarcal comigo e quando meus pais separaram foi o momento de maior liberdade da minha vida. Porque eu pude, dentro dos meus condicionamente (porque eu tava condicionado) vivenciar minha liberdade. Por exemplo: eu fui transar com 19 anos porque eu tava condicionado a muitas questões sobre o sexo, sobretudo porque eu era o primeiro filho, que devia ser comportado dentro de uma lógica machista heteronormativa. E quando eu comecei a fazer teatro me ajudou bastante e comecei a entender que existe um gesto social para tudo. Então, existe uma gestualidade para demarcar também esses espaços do feminino, do masculino, do trans, do underground… do bizarro, do grotesco, e são coisas que a gente pode vivência na nossa vida, sabe? porque o ser é apenas a possibilidade das coisas. o Ser é possibilidade e eu acho que a gente tá vivendo esse momento, mas é também um momento que a gente deve ter muito cuidado para não segregar mais as manas que tão num processo de entendimento, que não se encaixam, não se vêem encaixadas nesses padrões do que a gente compreende de literatura transgênero. Eu acho que é o caminho das possibilidades, entendeu? eu gosto muito do termo não binário, assim como eu gosto do termo travestilidade. Mas eu acho que a gente é o que a gente é e só temos esse corpo, essa matéria, para exercitar todas as nossas possibilidades mesmo de existir. E eu tô nesse momento que essa mitologia, essa representação, imagens da loba, da cobra, da sereia, do boto, da vampira, da encantaria tem feito muito sentido na minha vida, na minha existência. Mas eu também certos lugares neste corpo que agora nesse momento eu não quero transbordar, transgredir e isso é super natural também. Me pergunto sempre ate que ponto esses discursos de transgredir esse corpo matéria é um discurso de liberdade. Aí eu volto à história do HIV: esse corpo que depende de hormônios, de fármacos, é um corpo que está sempre dependente. E isso é horrível, porque e no dia que não tiver? No dia que eles quiserem boicotar? No dia que eles quiserem não dar acesso? Quantas psicoses vão haver, quantas loucuras vão aparecer na vida? Enfim … é isso!
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Fevereiro de 2018.
Salvador da Bahia, Brasil
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