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Árvore da Memória: Mestra Tina: Guardiã da Cultura Popular da Paraíba

Mestra Tina da Paraíba nos fala um pouco sobre sua vida e seus caminhos na Cultura Popular Nordestina

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Mestra Tina: Meu nome é Jocilene Cunha. As pessoas me conhecem por Tina. Tenho 39 anos de idade e faço parte da Capoeira Angola Comunidade, sou aluna de Mestre Naldinho desde 1996, lá em João Pessoa, na Paraíba. 

Já tenho 21 anos na prática, nessa vivência dentro do grupo. E não só faço parte da capoeira, mas também do outro lado da cultura popular de raíz, onde faço parte de um grupo chamado "Cavalo Marinho Infantil Sementes do Mestre João do Boi". 


Mestra Tina, da Paraíba
Antes não tinha este nome "sementes". Foi colocado depois da morte do meu Mestre, que é o João Antônio do Nascimento Pereira, também conhecido como João do Boi. O cavalo marinho infantil de lá tem uma resistência e existe desde 1968 nessa base e após o falecimento do meu mestre, eu tô dando continuidade ao brinquedo, a pedido dele. Ele pediu pra não deixar a brincadeira acabar e hoje eu tô na responsabilidade de manter a tradição viva nessa cultura maravilhosa, genuinamente brasileira, lá na Paraíba.

A gente faz ensaios todos os sábados, apresentações em vários lugares, eventos de capoeira, festival em faculdade, aniversário, onde quer que esteja, dia de reis, quando a gente comemora a nossa brincadeira. Eu já conhecia um pouquinho o cavalo marinho, em apresentações, no próprio bairro que eu moro, em João Pessoa. E até então eu era apenas parte do público. Eu via o grupo se apresentar e gostava muito de ver o pessoal brincando, se divertindo. 

Em 2005 o meu mestre me chamou para ajudar a organizar o grupo, ele já estava numa certa idade e ele estava precisando de alguém. Outras pessoas já tinham passado pelo grupo para tentar organizar mas até então eles não aguentaram ficar. Então eu aceitei o convite de ir e fazer parte e comecei a organizar o grupo dele de uma forma que as pessoas passaram a perceber uma mudança muito boa para a continuidade da brincadeira dele até porque pessoas da família participavam da dança mas não queriam ter a responsabilidade de organizar o grupo, deixar tudo bonitinho e organizado. E aí aceitei.

Ele faleceu em janeiro de 2012, e antes dele falecer ele me pediu para não deixar acabar a brincadeira. 

Inclusive a gente tem DVD, antes do falecimento dele ele registrou estes depoimentos, né? Dizendo "No dia em que eu for embora, quem vai cuidar da brincadeira é essa menina aqui." E aí eu tô aqui até hoje. Quando ele se foi acrescentamos o nome Cavalo Marinho Infantil Sementes do Mestre João do Boi, com Mestra Tina e Brincantes. 

Digo Mestra Tina, porque o pessoal da cultura popular está me considerando Mestra na brincadeira. Fora o cavalo marinho, eu faço parte de outro grupo também chamado Ciranda do Sol, que é do Mestre Manoel Baixinho, também da mesma cidade, do mesmo bairro que eu moro, na Paraíba. Foi na mesma época que eu comecei a organizar o grupo do cavalo marinho, o mestre Manoel Baixinho fazia parte do grupo do cavalo marinho, era um dos tocadores que respondia o coro e na mesma hora que o Mestre João me convidou, o Mestre Manoel me fez o mesmo convite para organizar o grupo da Ciranda dele. Então ele falou que só tinha os tocadores, precisava dos dançantes e os cirandeiros para formar o grande círculo, que o pessoal dança de mãos dadas, no sentido anti-horário do relógio. 

E aí eu fiquei pensando o que eu ia fazer porque era um mestre de cultura popular que estava precisando de pessoas com experiência em questão de organizar. Então ele falou: "Preciso de você também". Mas aí eu falei: "Eu não posso, eu tenho a capoeira, o cavalo marinho"... Ele falou: "Dá um jeito aí"!

Eu fiquei pensando: "O que eu vou fazer da minha vida, com três grupos? 

Eu disse: "Certo, Mestre, eu vou tentar" Eu decidi enfrentar. Se não for tudo no mesmo dia, no mesmo horário, tudo bem. Eu tomo conta de todos os documentos do grupo. Ele não sabe trabalhar a questão da administração dos documentos.

Então eu faço parte destas três brincadeiras. Uma hora eu tô na capoeira, no cavalo marinho, na ciranda … 

Às vezes coincide de todos os grupos se apresentar no mesmo local, só que em horários diferentes. Aí eu tenho que me transformar em três. Em capoeirista. Aí eu corro e tenho que me transformar em brincante do Cavalo Marinho. Aí quando termina, eu tenho que me transformar em cirandeira. 

                                      

Na Ciranda eu toco o Bombo, tem gente que chama de Zabumba, mas lá na cultura popular a gente chama de Bombo. O meu mestre Naldinho toca caixa ou tarol. E eu também dou resposta na Ciranda, tocando e cantando. E os outros tocadores também dão resposta enquanto estão tocando e dançando. 

Hoje eu tô aqui no Kilombo Permangola, do Mestre Cobrinha, mas tô com a preocupação com meu mestre, desde o dia 31 de dezembro ele está hospitalizado, teve um avc, mas parece que ele está quase tendo alta.

Eu respeito muito os mestres da cultura popular de raíz. Também respeito e considero as pessoas que tem um trabalho folclórico, mas o meu foco maior é a cultura de raíz. Eu gosto de beber água da fonte, com os mestres, que começaram com 5, 7 anos de idade e até os 70, 80 anos eles continuam brincando, mantendo a cultura viva. A cultura popular tá no meu sangue. Meu espírito é brincalhão, pra fazer diversão tanto minha quanto do povo, eu gosto de brincar. Eu já brinquei de tudo um pouco, no meio de rua, no campo, eu já participei de muita brincadeira, de futebol, de cantigas de roda, de pula corda, rouba bandeira, de peão, de bolinha de gude, que dependendo da região tem outro nome. No Rio Grande do Norte por exemplo, tem o nome de Biloca. Vamo Jogar Biloca? Brinquei muito e pra mim tudo serve como aprendizado…

Também já fiz parte de uma tribo indígena chamada Xavantes. Se não me engano eu tava com 12 anos de idade. Meu mestre se chamava Pindoba. Hoje não faço parte mais da tribo indígena, porque o tempo foi se passando e eu não sei explicar porque eu não dei continuidade. Os Xavantes sempre fazem ensaios para o carnaval, em fevereiro. Tem os encontros de tribos indígenas. Tem os africanos, os Papa Amarelo, os Tupinambás, os Pele Vermelha … então é diferente dos Torés … A tocada, a dança, nas pisadas que eles fazem de caboclo … Então eu fiz parte por um ano, ensaiei, aprendi a fazer meu cocar e fui para as festas dos carnavais, né? E na época, antes de ter o dia do encontro das tribos a gente fazia os ensaios e nos dias dos carnavais, a gente saía nas ruas do bairro dançando e aí era muito interessante. Depois de fazer toda a apresentação, às vezes parava numa casa e ficava tocando … a dona da casa se achava interessante, oferecia uma contribuição em dinheiro. Dançava, dançava e dançava e recebia essa contribuição …. aí lá na frente tinha uma outra casa, que queria contribuir, e aí ia …  Não faço mais parte da tribo indígena porque eu conheci a capoeira e não tenho como estar na tribo indígena mais.

Hoje o meu mestre, que era o chefe da tribo, o Pindoba, era o chefe dos Xavantes. Com o passar dos anos ele achou melhor vender a tribo que ele tinha, que era o Xavante e fez um africano. Hoje ele é africano. É muito bonito. Ele já ganhou primeiro lugar. Então meu mestre Pindoba é um camarada de valor, tem uma potência muito grande. E quando chega na época de carnaval a galera todo fica encantada com a apresentação deles.

Mo: Como vocês mantém os grupos de cultura popular q você participa?

Mestra Tina: É uma boa pergunta. A gente não tem patrocínio de nada. A gente não tem uma ajuda de um prefeito, órgão do governo, de ong nem de nada … A gente é a gente mesmo. Às vezes o grupo é contratado pra fazer uma apresentação, mas assim… não é essa coisa toda. Até porque a cultura popular a cada dia que se passa está sendo mais desvalorizada. Às vezes aparece algum prefeito que é ligado à cultura popular mas aí vem a mudança de prefeito, a gente fica procurando apoio e não encontra … E quando os grupos de cultura popular são chamados para fazer uma apresentação na cidade, às vezes recebe um cachezinho que infelizmente não dá pra comprar o  que a gente necessita para manter o grupo. Então é você ter o peixe e você não poder dar o valor pra mercadoria. Quem tem que dar o valor da mercadoria é a pessoa que tá te contratando: "Ah, eu te posso dar tanto…" . Você vê que é pouco e não sobra … "Poxa, eu fiquei com o dinheiro pra confeccionar ou reformar o boi, que precisa. Precisa comprar cola, tecido chitão, bastão, pistola, emborrachado, é um monte de coisas … quando você juntar e comprar tudo isso não sobra nada. E o mestre não precisa se alimentar? Não precisa se manter? Então o que faz a brincadeira ainda existir e permanecer ali, persistindo nos ensaios… quem faz isso são os próprios brincantes que ficam cobrando, perguntando: "Amanhã vai ter ensaio?" Tem mestres de cultura popular que ficam com vontade de desistir porque não tem um incentivo. O incentivo maior pra se manter é a insistência dos próprios brincantes, dos próprios dançantes … A gente não tem um cachê bom.

Mo: Antes de você já teve mestras mulheres nos grupos que você participa ou você é a primeira?

Mestra Tina: Assim como na capoeira, quando eu comecei não tinham mulheres treinando capoeira. E o cavalo marinho também não tinha mulher fazendo parte dessa brincadeira. Todos os brincantes eram homens. Não tinha mulher participando, assim como na capoeira. Com o passar do tempo, as mulheres foram começando a aparecer na capoeira, a aparecer no cavala marinho, foi abrindo esse espaço e hoje como mulher eu faço parte dessa cultura. Na ciranda eu não posso dizer nada porque a ciranda e para todo mundo. Todo mundo misturado. Então, eu só conheci uma cirandeira, Teka que e do coco, que quem toca ciranda toca coco, Mestra Lenita, de Joao pessoa. 

Mo: Você vê por parte das crianças, dos adolescentes, interesse pelo brinquedo?

Mestra Tina: Olha só: eu não posso dizer todas as crianças, mas as vezes a gente conta no dedo das crianças que tem interesse de fazer parte da cultura, né? Porque o cavalo marinho chama muita atenção da criançada por causa das figuras que tem, tem o burrinho, tem o cavalo, tem o boi, tem o jaraguá, a margarida … eles ficam encantados pela brincadeira e quando uma criança vê a outra, uma vai chamando a outra, daqui a pouco eles estão começando a acostumar ali com aquele ritmo, com aquela tradição, com aquela manifestação, daqui a pouco tem um bocado brincando… mas não são todas as crianças. Até porque tem crianças que tem vontade de brincar, mas às vezes os pais não deixam… Hoje em dia tem muitas pessoas que estão virando evangélicas … Mesmo gente que fazia parte de cultura africana, de cultura popular e depois muda, vira evangélico e começa a dizer que aquilo ali faz parte do demônio, do satanás, que não quero meu filho naquela brincadeira, que aquilo ali não é muito bom pra ele. Eu conheço um grupo de Lapinha, Lapinha Jesus Nazaré, de Mestre Maciel, também de Joao Pessoa, na Paraíba, que é muito bonito você ver a Lapinha se apresentar. A Lapinha de adolescentes, da terceira idade … Então o que aconteceu com a Lapinha de criança e adolescente lá? Abriu uma igreja do lado, onde ele faz os ensaios e os irmãos da igreja começaram a fazer convite para o pessoal que participa da Lapinha para ir pra igreja, começaram a conquistar e o grupo da Lapinha acabou. O mestre ficou preocupado porque colocaram na cabeça das mães, dos responsáveis, que aquilo ali não é coisa de Deus … eu acho que não tem nada a ver pessoas que já fizeram parte de manifestações culturais dizerem que aquilo ali é tudo o que não presta … Se você é evangélica e me vê tocando o tambor, vai dizer que eu sou da sacanagem porque tou tocando o tambor … Eu não quero generalizar todos, porque tem evangélicos que respeitam. Mas tem outros que não respeitam, que não quer saber … o que eles querem é que o povão fique ali, idolatrando eles … Quanto mais gente tiver ali, mais nome o camarada vai ter. Quanto mais gente ele puder tirar da brincadeira, que ele diz ser coisa do demônio, para ele é uma vitória. Hoje em dia eles estão usando nos cultos o pandeiro, o tambor, o timbal … mas como assim? Você antes não podia ver ninguém tocar uma lata que falava que isso era coisa não sei de onde, e agora vocês tão usando o instrumento dentro da igreja, até berimbau usam …

Mo: É possível encontrar o trabalho de vocês na internet?

Mestra Tina: Sim, é só procurar Cavalo Marinho Sementes do Mestre João do Boi.

Mo: Eu agradeço muito.

Mestra Tina: Eu que agradeço pelas perguntas porque vai relembrando das coisas e vamos colocando em prática estes aprendizados. Aqui no Kilombo Tenondé já são duas vezes que eu venho participar do Permangola. Sou muito grata ao Mestre Cobra Mansa pelo respeito, pela receptividade, pela atenção.
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Conversa realizada em janeiro de 2018, no Permangola, no Kilombo Tenondé. 
Valença, Bahia, Brasil.

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