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lundu, por paulo castagna

lundu
                                     


Em meados do século XVIII estabeleceu-se no Brasil uma modalidade de dança que seria conhecida, já no início do século seguinte, como a dança nacional. Denominada lundu, londu, landu, landum ou lundum, esse tipo de música parece ter sido a mais antiga dança brasileira da qual conhecemos exemplos musicais, embora seja necessário esclarecer em que medida o lundu foi exatamente brasileiro. Se não existiu qualquer documento português ou brasileiro anterior a 1775 com a denominação modinha, o mesmo ocorreu em relação ao lundu. Apesar de ter sido comum no Brasil, durante o século XVIII, um ritual africano denominado calundu, difundido também em Portugal já no séc. XVII, parece não haver relação direta entre a música que teria sido utilizada no calundu e a música do lundu nos séculos XVIII e XIX. Por outro lado, não existe dúvida que o nome dessa dança seja de origem africana, como informa Ernesto VIEIRA (1899, p.319):
“Lundum ou Landum. Dança chula africana, usada também no Brasil. O dicionário da língua bunda por Conecatim tem landú, todavia a forma geralmente seguida é lundum.”
Tudo indica que o lundu tenha mesmo surgido no Brasil, mesmo sendo o resultado da mescla de elementos musicais e coreográficos de origens diversas. A dança nacional portuguesa na segunda metade do XVIII era a fôfa, dançada aos pares, ao som de violas e guitarras (portuguesas); parece não ter sido muito utilizada no Brasil, já que normalmente não é citada em documentos brasileiros. No Brasil setecentista, ao contrário, foram predominantemente citadas duas danças: o lundu e o batuque. O batuque, a julgar pelas descrições e ilustrações disponíveis (as principais foram publicadas por Carl Friedrich von Martius e por Johann Moritz Rugendas), foi uma denominação portuguesa genérica para todo tipo de dança de negros, praticada em fazendas durante o dia e ao ar livre, nos fins de semana ou dias de festa. O batuque era acompanhado pela percussão de instrumentos idiófonos ou membranófonos ou, mais comumente, pela batida das próprias mãos, empregando-se também a umbigada, recurso coreográfico que se difundiu por todo o país em gêneros que ainda são observados entre populações de origem negra. Já o lundu parece ter sido uma dança mais difundida socialmente, praticada entre negros, brancos e mulatos. Carl Friedrich von Martius, que esteve em Belém em 1819, associou o lundu aos mulatos da cidade, com a seguinte observação (SPIX e MARTIUS, v.3, p.29): “Para o jogo, a música e a dança, está o mulato sempre disposto, e movimenta-se insaciável, nos prazeres, com a mesma agilidade dos seus congêneres do sul, aos sons monótonos, sussurrantes do violão, no lascivo lundu ou no desenfreado batuque.” Johann Moritz Rugendas (1802-1858), que acompanhou Langsdorff em uma expedição pelo Brasil entre 1821-1829, confirma a diferença social que existiu entre o batuque e o lundu, no Malerische Reise in Brasilien (Viagem pitoresca pelo Brasil), publicado em 1835 (RUGENDAS, p.157-158):
“A dança habitual do negro é o ‘batuque’. Apenas se reúnem alguns negros e logo se ouve a batida cadenciada das mãos; é o sinal de chamada e de provocação à dança. O batuque é dirigido por um figurante; consiste em certos movimentos do corpo que talvez pareçam demasiado expressivos; são principalmente as ancas que se agitam; enquanto o dançarino faz estalar a língua e os dedos, acompanhando um canto monótono, os outros fazem círculo em volta dele e repetem o refrão.” “Outra dança negra muito conhecida é o ‘lundu’, também dançada pelos portugueses, ao som do violão, por um ou mais pares. Talvez o ‘fandango’, ou o ‘bolero’ dos espanhóis, não passem de uma imitação aperfeiçoada dessa dança.” “Acontece muitas vezes que os negros dançam sem parar noites inteiras, escolhendo, por isso, de preferência, os sábados e as vésperas dos dias santos.”
Rugendas também produziu duas gravuras com o título “Danse landu”, nas quais foram retratadas duas situações sociais distintas, em torno da mesma dança. Na primeira delas (RUGENDAS, 3ª div., pl.18), representou uma cena noturna ao ar livre, ao lado de uma casa grande e em frente a uma fogueira, envolvendo um casal de dançarinos, um tocador de viola e dezenove espectadores, constituídos de negros, mulatos e brancos, entre os últimos um clérigo e um homem armado com espada, ao lado de sua companheira. O dançarino, vestido à portuguesa, com sapatilha e meias, mantém os dois braços levantados, com castanholas nas duas mãos, enquanto a dançarina movimenta-se com as mãos na cintura. Na segunda gravura (RUGENDAS, 4ª div., pl.17), existe uma cena semelhante, porém ao cair da tarde e junto a um casebre, na qual observa-se um casal de dançarinos mulatos, ambos descalços, mas realizando os mesmos movimentos da gravura anterior: o homem com os braços erguidos, aparentemente estalando os dedos, e a mulher com as mãos na cintura. Treze pessoas, entre negros e mulatos, presenciam a dança, um deles a cavalo. Além da difusão social, Rugendas também atesta uma ligação direta entre o lundu e certas danças ibéricas (portuguesas ou espanholas) como o fandango e o bolero, nas quais eram utilizadas as castanholas, os estalos dos dedos e o acompanhamento das violas, chegando até a afirmar que as versões ibéricas seriam derivadas do lundu. Assim como no caso das modinhas, é bem possível que o lundu tenha passado por transformações na transição do século XVIII para o XIX. Por outro lado, as informações conhecidas da segunda metade do século XVIII concordam com aquelas apresentadas por Martius e Rugendas. O próprio Domingos Caldas Barbosa relaciona o lundu ao fandango (ARAÚJO, p.22-23):
Eu vi correndo hoje o Tejo, vinha soberbo e vaidoso; só por ter nas suas margens o meigo lundum gostoso. Que lindas voltas que fez; estendido pela praia, queira beijar-lhe os pés.
Se o lundum bem conhecera, quem o havia cá dançar; de gosto mesmo morrera, sem poder nunca chegar. Ai, rum, rum, vence fandangos e gigas a chulice do lundum. [...] Outra informação importante do final do séc. XVIII pode ser encontrada em uma carta de 1780 do ex-governador de Pernambuco, D. José da Cunha Grã Athayde e Mello, segundo a qual além da relação com as danças ibéricas, o lundu era comum entre brancos e mulatos (ARAÚJO, p.55):
“[...] Os pretos, divididos em nações e com instrumentos próprios de cada uma, dançam e fazem voltas como arlequins, e outros dançam com diversos movimentos do corpo, que, ainda que não sejam os mais indecentes, são como os fandangos em Castella e fofas de Portugal, o lundum dos brancos e pardos daquele país”.
A descrição mais pormenorizada de um lundu, entretanto, foi-nos deixada nas Cartas Chilenas (1787), de Tomás Antônio Gonzaga. Neste texto, além de uma vez mais ser informada a tendência de expansão social do lundu, o poeta indica a presença da viola e dos estalos dos dedos, mas acusa o uso da umbigada, elemento coreográfico originário do batuque (ARAÚJO, p.22):
Fingindo a moça que levanta a saia e voando na ponta dos dedinhos, prega no machacaz, de quem mais gosta, a lasciva embigada, abrindo os braços. Então o machacaz, mexendo a bunda, pondo uma mão na testa, outra na ilharga, ou dando alguns estalos com os dedos, seguindo das violas o compasso, lhe diz - “eu pago, eu pago” - e, de repente, sobre a torpe michela atira o salto. Ó dança venturosa! Tu entravas nas humildes choupanas, onde as negras, aonde as vis mulatas, apertando por baixo do bandulho a larga cinta, te honravam cos marotos e brejeiros, batendo sobre o chão o pé descalço. Agora já consegues ter entrada nas casas mais honestas e palácios!
Manuel Raimundo QUERINO (p.293) confirma a presença dos traços ibéricos no lundu oitocentista, apresentando a seguinte descrição da coreografia de uma variante do lundu denominada lundu de marruá:
“Duas pessoas na posição de dançarem a valsa, davam começo ao lundu. Depois, apertavam as mãos; levantavam os braços em posição graciosa, a tocar castanholas, continuando a dança desligadas.”
Outro autor, ARARIPE JUNIOR (p.169-170), mantém a crença de ter existido relação direta entre o lundu e certas danças ibéricas, apresentando outra descrição de sua coreografia:
“[...] O lundu, que é tudo que pode haver de mais dengoso em matéria de canto e coreografia, excede à seguidilha espanhola, com a qual guarda parentesco, e a dança voluptuária do ventre, das orientais. Não é tão ideal como a primeira, nem tão brutalmente carnal como a segunda: é, porém, mais quente do que ambas, sem desabrochar na lubricidade descabelada das falotomias antigas. No lundu há uma leveza de pisar, um airoso de porte e uma meiguice de voz, que não se encontra em nenhuma das manifestações similares de outros povos mestiçados; e a sua maior originalidade consiste no ritmo resultante da luta entre o compasso quaternário rudemente sincopado dos africanos e a amplificação da serranilha portuguesa. Essa fusão de ritmos na península deu cabimento à caninha verde e à chula, cuja grosseria diariamente observamos. A mulata, entretanto, vibrátil, ciosa, por vezes lânguida, pondo os incitamentos desses dois ritmos nos quadris, como expressão da sexualidade, subordinados ao canto apaixonado, estuoso e ao mesmo tempo grácil, começou a sincopa-lo a capricho, produzindo flexuosidades quase inexprimíveis e de um erotismo refinado.”
Como já referido anteriormente, o nome lundu indica a existência de alguma relação entre essa dança e a cultura africana, que até o momento não foi totalmente apurada. Por outro lado, os mais antigos exemplos musicais conhecidos de lundu corroboram sua possível origem ibérica. Uma das peças do anexo musical Brasilianische Volkslieder und Indianische Melodien (n.9) é o “Landum, Brasilianische Volktanz” (lundu, dança popular brasileira), a única obra instrumental da coletânea (exemplo 4) e, ao mesmo tempo, o mais antigo registro musical que se conhece desse tipo de dança, no Brasil (SPIX e MARTIUS, v.2, p.301).

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