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Árvore da Memória: Joás Santos e o sonho Fankani





Estamos nesta cidade linda que é Olinda, com o Joás Santos, que vai nos falar um pouco sobre sua história com o universo musical africano  ...


Joás: Eu comecei tocando afrobrasileiro, capoeira, samba, na comunidade onde morava. Depois me apaixonei pela música da Bahia, o samba reggae, eu já gostava de reggae, e toquei samba reggae durante dez anos .... Até decidir morar em Olinda, pra estudar o côco, o maracatu, ciranda, essas coisas nossas ... Aqui a cultura popular é muito rica! E aí acabei fazendo um ano de aula no Axe Ribeiro.

Depois de um ano ele precisou viajar, e me deixou dando aula no lugar dele... e aí foi onde eu conheci várias pessoas do mundo, comecei a fazer essa troca também, de ensinar coisa de Pernambuco e aprender música de outras lugares do mundo. 

Aí eu me apaixonei pela música da Áfrika ... djambe! eu já gostava de timbal, atabaque, instrumentos que se toca com a mão ... mas o djambê ... quando eu pude tocar pela primeira vez, eu senti que tinha uma magia especial, que tinha a ver com meus ancestrais ... a primeira vez que eu toquei um djambé, foi uma coisa que mexeu comigo ... não era um instrumento que eu ia chegar e tocar ... eu tentei tocar e recebi um recado "Calma, meu filho ... não é por aí não ... vai mais devagar ...  que você chega lá!"

E aí entrei neste mundo, né? 

Aqui em Pernambuco teve a primeira oficina em 2003, com Ale Dominique, um alemão que viveu 20 anos na África e foi o primeiro a trazer mais informação direta pra mim ... até aí eu tava com métodos, com internet ... 

Eu agradeço muito esse cara. A minha mão machucava muito ... aí ele me ensinou a técnica de fazer som sem ter que machucar minha mão ... 

Aí ele ensinou um ritmo e a gente passou mais de ano estudando esse mesmo ritmo aqui ... porque a gente não tinha referencia nenhuma e o ritmo também era difícil, era complexo ... a gente ficou ano estudando o mesmo ritmo, até que eu viajei pro Rio algumas vezes e comecei a fazer outros workshops fora de Olinda, conheci vários mestres ... Inclusive quem eu considero meu grande mestre, que é o Erick Djambe, eu conheci no Rio de Janeiro. 

Depois através dele conheci vários outros mestres ... e a gente tá sempre nessa de reciclar ... essa musica é tão rica, que o tempo de vida é pouco pra aprender tudo, mas o mais importante é disseminar isso, não só absorver ... porque é uma música coletiva. Então quando você absorve, você tem essa missão de compartilhar, seja de uma forma ou de outra. 

Às vezes a gente precisa como trabalho, mas também não pode se fechar ... a gente faz trocas, a gente faz de tudo aqui ... 

A galera chega também com seus conhecimentos ... Hoje em dia aqui tá muito massa, porque antes era eu que tinhas as informações ... agora os meninos que chegam com as informações, estudando pela internet, baixando métodos e tudo ... E hoje em dia aqui, eu não apenas ensino, mas eu aprendo também. É um aprendizado eterno ... 

Por isso eu me apaixonei por essa arte ancestral ... não só o djambe, os dunduns, o ngoni, as kalimbas ...  instrumentos africanos, instrumentos raros em geral ... eu sou apaixonado por instrumentos raros ... essa coisa de dar vida ao material, como tubos de pvc, placa de raio x, botijão de gás ... eu acho que é uma coisa muito importante para a Babilônia, que produz tanto lixo ... mesmo que não seja muito, mas qualquer coisa que você recicla e fabrica um instrumento, que você da vida, menos um lixo no mundo. Tem a historia do valor que as pessoas dão a este objeto sonoro, algo que era lixo e você transformou, deu vida pra aquilo ... para mim, o instrumento tem vida. 

Joás Santos . Fankani . Olinda . Afromandinga . Upcycling

Mo: Como foi o processo de começar a fazer os instrumentos?

Joás: Esse processo começou aqui em Olinda, em 2001. O primeiro instrumento que eu fiz foi um tambor falante... um tambor que eu era apaixonado. Antes disso, eu estudava musica, dava aula, mas não fabricava instrumento... Sempre fui artista plástico. Sempre pintei a óleo, desenhei ... Aí aqui em Olinda, com isso não consegui desenvolver minha arte. Fazia meus quadros, mas não conseguia vender ... acabei dando várias pinturas minhas. 

Ai fui me achar com um instrumento que eu era apaixonado, que tava numa loja e o cara não queria trocar pelos meus quadros. Ele queria só dinheiro. Ai eu falei: "Vou deixar meus quadros aqui. Se vender, eu compro o instrumento." Acabou que os meus quadros foram ficando lá, não vendeu .... e de tanto eu olhar lá o instrumento falei "Ah... vou fazer em casa eu mesmo". Então tentei com o pvc, que é um material que eu uso até hoje. E aí foi tanto desperdício que eu já tinha desistido. Eu tinha dois pedaços de pvc que deram certo, aí pensei "vou pegar esses dois que deram certo e vou juntar ..." Aí colei um no outro e o primeiro instrumento que eu fiz foram dois pedaços de pvc emendados. Aí fiz o primeiro tambor falante. 

Tinha um monte de gente de fora aqui, por causa da Bienal da UNE, a galera viu o tambor e me arrisquei a fazer mais. Foi daí onde tudo começou. Eu fiz 10 tambores e comecei a vender e deu certo. E a pintura, ao invés de ser nos quadros, passou a ser nos tambores. 

Você faz uma pergunta e eu dou dez mil respostas ... Mas vou lembrando das histórias ... resumindo também, né? Se for falar tudo ... é muita história ... 

Eu sou de Recife, fui criado em Paulista e fui adotado em Olinda ... eu falo adotado porque Olinda fez que eu me desligasse dessa coisa do sistema, porque eu trabalhava em firma, era escravo do sistema, não tinha tempo pra exercer a criatividade que vinha na minha cabeça. Eu só tinha tempo pra enricar quem já tava rico. E foi nessa época que eu conheci o rastafarismo, segui um tempo. Não sou mais rasta. Nessa época, teve uma congregação que passou aqui chamada Congo Naya. Até então, a gente tinha mais informações sobre reggae de referências que estavam mais na mídia ... com Congo Naya a gente teve essa experiência com os caras mesmo, convivência, musicalidade, alimentação ... O rastafari sabe usar o sistema na hora certa, não fica totalmente excluído do sistema. A gente precisa dele pra alguma coisa, mas não podemos ficar totalmente dependentes, porque a maior força está aqui na vida, o que nos move mesmo, o que me botou aqui ... a vida mesmo! 

Então ... a música do rastafarismo, o Nyahbingi me deu muita oportunidade de gravar com bandas de reggae, com músicos da Jamaica, músicos de nome do Brasil e de fora do Brasil ... Quando morei no Rio também fiz muita parceria com a galera de lá. 

E aí fui entrando nessa coisa toda e fiquei no Mandinga mesmo ... o Djambê, os Dunduns e todo sábado a gente tá aqui, na resistência! Amanhã tem aula, à tarde tem um estudo pra galera mais avançada, e na segunda feira a gente tem um estudo com dança.

O Fankani não é só uma banda, o Fankani é todo um movimento ... A gente é a maior referência em Pernambuco de música mandinga, atualmente. Tem outras pessoas que tem parentes de África, que tem essa raíz, mas não está com um trabalho social como a gente está, de manter a coisa semanalmente, das portas estarem sempre abertas, da gente receber gente aqui direto, não só pra estudar, como também pra trazer informações ...

Agora que a gente tá trabalhando com a dança é um novo aprendizado pra gente, porque todos os ritmos são pra dança. Quando você vai tocar para a dança mesmo, você vê que tem muitos outros detalhes... você tem que entender o movimentos delas, você tem que fazer frases na hora certa ... então a gente está recomeçando com essa história da dança. Estamos sempre aprendendo. 

Estamos querendo trazer os mestres pra cá também. Está mais fácil porque agora temos mestres morando no Brasil, em São Paulo, Floripa ... Estamos mexendo os pauzinhos nos projetos para trazer, fazer um festival, um workshop aqui com essa galera. 

Mo: Você conheceu a música Mandinga aqui mesmo?

Joás: Sim, conheci aqui mesmo, no Pernambuco. Quando eu cheguei para morar em Olinda, tinha uma banda chamada Tambor Falante. E essa banda misturava djambê, dundun, congas com instrumentos afrobrasileiros. Era afromandinga, mas eles não faziam os ritmos tradicionais. Eles usavam as influências dessa música malinké, mandinga para fazer as composições. Eram composições deles, mas bebendo dessa fonte. 

E antes deste grupo, aqui teve um percussionista chamado Bereguedê. Eu vim conhecer ele depois de anos. Todo mundo fala que ele foi o primeiro que trouxe um djambê pra cá. Então já tem várias gerações que essa música já está aqui. E eu admiro muito essa galera ... tem que ter muita disposição, porque não é fácil. Os ritmos tradicionais mesmo, são difíceis, com os instrumentos certos, as passagens e tudo ... e aí a galera encarou mesmo estudar estes ritmos. 

Fankani tem 15 anos. Aqui na resistência, fazendo essa música. Não é fácil. Na verdade a gente não entende porque a gente tem obrigação com isso, mas é justamente essa parte que a gente não entende, são nossos ancestrais. Quem foi que me disse que eu tinha que fazer isso? Ninguém chegou pra mim e disse que eu tinha que fazer, mas é uma coisa que vem de dentro mesmo, do espiritual ... quando eu vi o djambé eu me apaixonei ... foi o próprio instrumento que trouxe essa ancestralidade. E é esse mesmo o motivo de fazer as coisas ... disseminar, para que não acabe para nossos netos, bisnetos... assim  como a gente tá recebendo também de famílias, de griôs, de ancestrais que já se foram e eu acredito também que esse aprendizado tanto é antigo, quanto é muito contemporâneo também. 

Toda a sabedoria se juntando ... os mestres de hoje de djambe já tocam diferente, principalmente os mais novos ... então quer dizer que essa cultura ainda está sendo aprimorada. Tá em movimento. Ela é tão rica que a gente nem acredita que ela ainda tá sendo aprimorada. Então para que ela seja forte, eu acredito que eles que tão aqui, vão tocar muito melhor que eu, e os mais novos que eles, que tão vindo, a tendência é que os mais novos cada vez tenham mais acesso, por conta da gente que tá fazendo isso aí, essa nossa parte. 

Feito isso que eu falei lá. 

Eu não posso esquecer de falar de um cara que eu nem conheço bem, mas eu sei que foi ele que fez essa historia aqui em Pernambuco. Se eu trabalho com isso e aqui em Pernambuco eu não assumi isso, então eu to negando minhas próprias raízes. 

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Olinda, Abril de 2018
Pernambuco do Brasil




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