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Árvores e Portas da Memória e do Esquecimento

baobá, a árvore da memória ancestral

A travessia da #kalunga é a travessia da própria linha da vida. Renascer, crescer e mergulhar no desconhecido mundo das forças invisíveis com consciência é permitir-se retomar a própria historia, reconectar com as raízes da ancestralidade, reconectar-se com elos perdidos pelos movimentos do tempo e dos fluxos de dominação a que os antepassados foram submetidos e que nós mesmos estamos sendo submetidos, novos processos com roupagem nova, mas com a mesma essência de escravidão e miséria humana . Somos chamados a nos libertar! 

Somos convidados a nos relembrar. Ativar a memória de nossos cromossomos. De nossos átomos. Ativar nossa memória mineral. Nossa memória pré-fetal. Nossa memória vegetal.

No Brasil, no estado de Pernambuco, existe uma cidadezinha chamada "Porto de Galinhas". Para esta cidade vieram muitos afrikanos escravizados, que chegaram para serem vendidos clandestinamente no Brasil. Vinham escondidos embaixo de engradados de galinhas d'angola. 

Por ser em uma época onde, teoricamente, o tráfico negreiro já havia sido proibido, os traficantes usavam como código a senha "Tem Galinha Nova No Porto" para anunciar um novo carregamento de humanos traficados. Por causa disso, essa cidade que outrora se chamava "Porto Rico" (devido à abundância de pau Brasil), ficou conhecida por "Porto de Galinhas".

Tempos depois, esta cidade virou um pólo turístico onde os principais monumentos são estátuas de galinhas de variadas cores e tamanhos.

Não existe nesta cidade um único monumento público em memória a todas as levas de afrakanos que chegaram para serem vendidos como seres escravizados na nova terra.

Perto desta vila, no entanto, existe uma pequena cidade chamada Conceição do Ó, onde na praça principal ainda está de pé uma enorme e centenária Baobá. 

Esta árvore, que é considerada a mais sagrada das árvores em vários países afrikanos, é reverenciada como morada dos espíritos ilustres dos ancestrais e considerada um altar natural nas cosmovisões de várias religiões de matriz afrikanas, trazendo consigo também o simbolismo da manutenção da memória primordial.

Conta-se que estas mágicas árvores eram usadas como portais para o esquecimento do povo afrikano. Tanto lá quanto aqui. Os escravizados eram obrigados a dar sete voltas (no caso de serem homens) ou nove voltas (no caso de serem mulheres) ao redor das baobás para se esquecerem de todas as suas raízes, de toda sua ancestralidade e se tornarem humanos mais maleáveis às exigências dos colonizadores e traficantes.

Na Áfrika, além das árvores, eram também utilizados grandes portais para as mesmas manobras.

Estas portas eram conhecidas como "Portas do Não-Retorno", pois se dizia que quem através delas passavam, jamais voltariam a pisar nos solos da mãe Afrika.

Existe uma "Porta do Não-Retorno" em Senegal, na Ilha de Goré, com o nome de Casa dos Escravos (escravizados). 

Casa dos Escravizados, em Senegal. Ao fundo, a Porta do Não Retorno

Também existe uma "Porta do Não-Retorno" em Ouidah, no Benin, onde se pode ler em uma placa: "Simboliza a última etapa da maior deportação jamais conhecida na humanidade - o comércio negreiro". 

A cada ano, no dia 10 de janeiro, desde 1992, o povo beninense comemora uma grande festa de culto Vodum em memória a todos aqueles que partiram e nunca mais voltaram.

Porta do Não Retorno, no Benin. Ouidah

No entanto, a trajetória dos "retornados" - Agudás (Benin), do povo Tabom (Gana) e dos Brasileiros (Nigéria) - demonstram que a história acontece através de movimentos contínuos-intermináveis, dialéticos e, a menudo, surpreendentes

Assim, as mesmas portas do "Não-Retorno" tiveram que se abrir para os "Retornados".

Os "retornados" foram afrikanos ou afro-descendentes já nascidos nos novos territórios da diáspora que voltaram ao continente, mesmo que nem sempre para o seu lugar de origem. Estes caminhos de volta eram comuns entre as comunidades afrodescendentes dos Estados Unidos e do Reino Unido e, sobretudo a partir de 1840, no Brasil também começou a ser uma prática recorrente.

No Vai e Vem das águas de #Kalunga, o destino destes #retornados foram os locais que mais haviam fornecido mão de obra escrava ao Brasil: as cidades portuárias do Golfo da Guiné, onde hoje estão Gana, Benin e Nigéria.

Em Gana ficaram conhecidos como "Tabons", porque quando lá chegaram, para quase tudo o que lhes perguntavam respondiam "Tá Bom", por não dominarem as línguas africanas locais. 

No Benim, foram chamados de "Agudás"

Na Nigéria, os retornados ficaram conhecidos como "Brasileiros".

De volta ao continente mãe, em sua re-inserção social, os "retornados" obviamente passaram por vários processos de exclusão social e crises identitárias - já que nos territórios afrikanos não eram mais considerados afrikanos, e sim afro-americanos ... 

Com o passar do tempo, no entanto, foram sendo aceitos e, afinal firmaram-se socialmente como exímios artesãos, comerciantes, construtores e arquitetos.

Os números não nos deixam cair na ilusão. Estima-se que cerca de 14 milhões de afrikanos foram levados para as Américas e outros tantos milhões foram levados ao Oriente.

"Só nas Américas, o número de afro-descendentes ultrapassa 200 milhões e muitos deles vivem sob terríveis circunstâncias. Estão frequentemente entre os mais afetados pela pobreza, desemprego e condições precárias de vida. Este não é um mero acidente do destino. Precisamos reconhecer que na raíz desta deplorável realidade está a discriminação estrutural, que teve origem em lugares como a ilha de Gorée." (http://unicrio.org.br/o-legado-da-porta-sem-retorno/)

Somos convidados a dar voltas de libertação ao redor das árvores sagradas, escrever e re-escrever nossa própria história. 

Assim ... Plantemos nossas Baobás, invoquemos a ativação de nossa memória coletiva ancestral para que as "Portas do Não Retorno" não obedeçam às leis do "Eterno Retorno" e possamos nos Relembrar. 

Possamos escrever juntos uma nova história pan-africanista, que não vai funcionar apenas na Afrika, que demanda conexão e trans-diálogo entre todos os territórios envolvidos na diáspora negra. Nos reconhecermos lá para nos conhecermos aqui. Nos conhecermos aqui para nos reconhecermos lá.

Apenas assim vamos conseguir reunir de volta as peças espalhadas deste grande quebra-cabeças. Apenas assim vamos realizar a cura destas mazelas ancestrais.

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Mo Maiê, Mariana (MG), dezembro de 2017.

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#cosmovisão #cosmopercepção #bakongo #bantu #Kala#mussoni #tukula #luvemba #kianda #filosofiaAfricana #capoeiraAngola#descolonização #capoeira #ancestralidade #roots 
. fontes:
Alcione M. Amos, « Afro-Brazilians in Togo », Cahiers d’études africaines [En ligne], 162 | 2001, mis en ligne le 12 juin 2004, consulté le 28 décembre 2013. http://etudesafricaines.revues.org/88
http://www.ensinarhistoriajoelza.com.br/11-lugares-de-memoria-da-escravidao-na-africa-e-no-caribe/
http://unicrio.org.br/o-legado-da-porta-sem-retorno/

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