Itaparica/Salvador
(BA), março/junho de 2017
O
tráfico de escravizados no transatlântico foi “o maior deslocamento forçado de
pessoas a longa distancia na história da humanidade. Foi o maior demancial
demográfico para o repovoamento das Américas após o colapso da população
ameríndia. Cerca de quatro entre cada cinco mulheres que atravessaram o
Atlântico vinham da África.” (ELSTIS, David apud
MALANDRINO, 2009)
Há três anos atrás escrevi um pequeno texto sobre a
origem dos africanos escravizados que vieram para o Brasil. Notando o crescente
interesse da comunidade brasileira pelo tema, percebi a necessidade de um
aprofundamento nesta pesquisa. Então decidi escrever, aos poucos, novos textos,
dando continuidade à busca por respostas a esta pergunta que tanto me provoca,
tendo em vista aprofundar nas informações sobre os povos originários e sua
relação com os fluxos da diáspora e do povoamento das Américas, mais especificamente,
do Brasil.
Esta temática deve ser pesquisada, discutida, esclarecida,
porque apenas conhecendo nossas raízes ancestrais e assumindo a importância,
tanto dos africanos quanto dos afro-descendentes na elaboração da ordem
sócio-cultural brasileira, é que conseguiremos romper com padrões
e códigos coloniais que nos separaram em estratos sociais, impedindo que haja
uma real igualdade sócio-racial em nosso país.
As violentas heranças da colonização dificultaram o
amadurecimento dos processos sociais e políticos (contaminados pela corrupção),
tanto nos territórios americanos invadidos, quanto na África.
Imagine o impacto causado pela comercialização de
escravizados nas tribos africanas, no período de intenso tráfico negreiro! A África
até hoje não se recuperou dos prejuízos humanos, naturais, culturais e sociais
deste período histórico.
De onde vieram os africanos que saíram de África para
trabalhar forçadamente nas Américas?
É uma pergunta que nos leva a territórios belíssimos,
povoados por pessoas com alto nível de humanidade, cultura e tecnologia
ancestral.
Neste artigo vamos falar do povo Bantu, já que o Kongo,
junto com outros estados do centro-oeste africano, tornou-se a região da África
em que os europeus obtiveram a maioria dos escravizados que cruzaram o
Atlântico para trabalhar nas plantações, nas construções urbanas e minas das
Américas durante os três séculos e meio do tráfico negreiro, do século XVI ao
século XIX.
“O
tráfico de escravos interferiu negativamente no sistema social angolano,
rompendo com o padrão de vida bantú e com seu sistema tradicional de entendimento
do mundo: “Criada e desenvolvida como um
complemento econômico do Brasil, a principal função do Ndongo, ou seja, o
fornecimento de seres humanos à colônia brasileira, violentou a forma interna
de sujeição e servidão, que fora caracterizada como escravidão pelos europeus”.
(GLASGOW 1985:48 apud MALANDRINO,
2009)
Os portugueses invadiram e
passaram a controlar territórios costeiros de Angola (como o Porto de Luanda e
o Porto de Benguela), território em que na era do tráfico transatlântico, foi de
onde mais saíram - forçados - africanos para o Brasil.
Para David Eltis, “durante quatro séculos, desde meados do século XV até 1867, os
europeus não estavam preparados para escravizar-se mutuamente, mas estavam
dispostos a comprar africanos e a mantê-los escravizados, a eles e seus
descendentes. Levando-se em consideração que a “África” praticamente não
existia para os africanos enquanto conceito em qualquer sentido antes do século
XIX, a maioria das pessoas que viviam no subcontinente ao sul do Saara (como na
Europa) estavam dispostas a escravizar outras de sociedades adjacentes ou
distantes”. (ELTIS, 2007)
Se é certo a colocação de David Eltis de que não havia
um consenso geral por parte dos africanos sobre o seu pertencimento a um mesmo
continente, por outro lado a história tem provas de que existiram na África
grandes reinados ou impérios, desde os tempos mais remotos. Um dos maiores
destes Reinos chamou-se Reino Bakongo. Isto nos interessa, porque é este o
reinado do povo Bantú e do povo Kongo.
Para pensarmos sobre a África, é fundamental termos em
conta sua enorme diversidade étnica, resultado de inúmeras mesclas que aconteceram
no decorrer da história da formação social deste continente, sempre marcado por
constante fluxos de migração.
Fu Ki.Au, pensador congolês, nos diz que “remontando ao segundo milênio A.C.,
lentamente aconteceram ondas migratórias de comunidades Bantu saindo do sul da
região do Rio Benue, na Nigéria, em direção ao sul, para a floresta equatorial
do centro-oeste africano e proximidades, processo que fez com que a maioria dos
africanos que vivem na região ao sul do equador viessem a falar uma ou mais das
400 línguas relacionadas ao Bantu”.
Por volta do século XIII ao século XV, nos tempos do
auge do Reino do Kongo, em que os bakongos desenvolveram tecnologias altamente
avançadas para trabalhar o ferro, complexos sistemas de troca, cultura agrária e
instituições políticas, os europeus foram adentrando-se em seu território e,
pouco a pouco, passaram a impor suas crenças religiosas, explorar seus bens
naturais, realizar repressões ideológicas, culminando no declínio deste império
que, fragmentado, originou três estados “controlados
por portugueses, belgas e franceses, de 1880 até a independência nos anos 60 e
70 do século XX, quando os territórios coloniais se tornaram as nações modernas
de Angola, Zaire e República do Congo, respectivamente”. (FU KI.AU, Ntangu, Tandu, Kolo: o conceito bantu-kongo do tempo)
A primeira viagem negreira da África para
as Américas provavelmente ocorreu em 1526. Do lado africano, a grande maioria
das pessoas envolvidas nos primeiros tempos do tráfico de escravizados vinham
da costa da Alta Guiné, tendo passado inicialmente pelas feitorias portuguesas na
Mauritânia e mais tarde nas ilhas de Cabo Verde. No entanto, a viagem de 1526
partiu de outra grande feitoria portuguesa na África Ocidental — São Tomé, no
golfo de Biafra — embora seja quase certo que os escravos eram provenientes do
Kongo.
O tráfico de escravizados para o Brasil, que
acabou sendo responsável por cerca de 40% do comércio negreiro, teve início em
torno de 1560. O açúcar impulsionou esse tráfico, à medida que os africanos
foram substituindo a força de trabalho indígena utilizada nos primeiros
engenhos de açúcar, entre 1560 e 1620. Quando os holandeses invadiram o Brasil
em 1630, Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro estavam fornecendo quase todo o
açúcar consumido na Europa, e quase todos os escravos que o produziam eram
africanos. (ELTIS, 2007).
No final do século XVII, as descobertas de ouro,
primeiro em Minas Gerais e mais tarde em Goiás e em outras partes do Brasil,
deram início a uma transformação no tráfico de escravizados, que provocou uma
expansão ainda maior desse comércio.
Na África, além de Angola, os golfos de Benim e
Biafra tornaram-se grandes fontes de abastecimento e a eles se uniram mais
tarde as zonas mais marginais de Serra Leoa, Costa do Barlavento e sudeste da
África.
Se formos parar para pensar que o principal grupo
linguístico da África que influenciou a criação da língua brasileira foi o
“BANTU” (da família linguística Níger-Congo), consequentemente, devemos
reconhecer intensa presença de africanos Bantu na formação do povo brasileiro.
A partir dos intensos fluxos da diáspora negra, o
destino do Kongo e do “Novo Mundo” se entrelaçaram pelos próximos séculos.
“Os grupos de
tradição bantú chegaram muito precocemente ao Brasil, sendo que vários aspectos
de sua tradição foram assimilados, ressignificados e naturalizados dentro da
cultura brasileira. A tradição bantú possui uma lógica popular, mas trás em si
muitas especificidades. Nesse sentido, lembrar que durante a escravidão, entre
1690 e 1850, os portos angolanos e os portos da Costa de Mina foram os
fornecedores de escravizados para o Brasil”. (MALANDRINO, 2010)
No entanto, ainda que tenham sido dos primeiros
africanos a chegarem no Brasil e dos mais numerosos a virem para cá ao longo da
história da diáspora Africana, pouco se fala sobre a importância da
contribuição dos Bantú para a criação da identidade do povo brasileiro, seja
na criação de nosso vocabulário, da música popular, da capoeira, das
manifestações religiosas, das técnicas mineradoras, da culinária ...
A África Centro Ocidental
foi “a grande área fornecedora de escravizados,
não só nas incursões juntos aos povos do litoral, mas também em cidades
localizadas ao longo da costa. (…) Portanto, entre os
séculos XVI ao XIX, foi em torno do tráfico de escravos que se deu a relação
entre os africanos, com destaque para os angolanos, e os europeus, com destaque
para os portugueses. Cabe notar que esse contato foi regido por relações
desiguais de poder.” (MALANDRINO, 2009)
O tráfico negreiro passou a ser uma das
atividades estruturais de alguns territórios africanos, dentre estes, Angola e
Kongo, e passou a ser aceito socialmente, abalando profundamente os indivíduos
e a sociedade bakonga, no geral.
Com a sociedade desestabilizada e
enfraquecida, de onde foram arrancados as pessoas mais fortes e os maiores
mestres e conhecedores dos mistérios de sua filosofia e cultura, as famílias
Bantú foram destruídas e seus membros separados uns dos outros, rompendo a
ordem natural dos ciclos vitais deste povo, para o qual a “vida só existe pela
e na comunidade.” (MALANDRINO, 2009)
Em uma palestra realizada em 1997 em Salvador, o
pensador congolês Fu Ki-Au nos fala:
“Mais de 40% dos escravos trazidos para as Américas
vieram desta região em particular (Kongo). É bem infeliz para nós, porque o
mercado de escravos destruiu totalmente este reino. Os maiores Mestres que
existiam nesse reino foram levados. Todos os jovens entre 15 e 25 anos também
foram levados e o pior: quando eles chegaram no Novo Mundo, por causa do
tratamento que eles receberam, esses Mestres… todos esses Mestres que tinham
esse conhecimento, tiveram que morrer. Eles morreram durante a travessia do
Atlântico: quando chegaram na terra foram submetidos a trabalhos forçados, e os
que não queriam se submeter, tiveram que lutar. E como eles não tinham armas,
como os senhores, eles começaram a se organizar de maneira secreta. Nessa
medida eles começaram a entender os poderes que eles tinham adquirido na África.
E a capoeira nasceu no Brasil”. (FU Kiau, 1997)
O ser humano trás dentro de si enorme capacidade
de regeneração e superação. E assim, é
da destruição de todo um império que nascem novas formas e manifestações de
cultura, arte e práticas sociais no novo mundo.
O povo bantú se relaciona com a morte e com os ciclos do
tempo e da vida de uma maneira muito particular. A morte não é um fim, é uma
passagem para um recomeço. A diáspora transatlântica possibilitou a
ressignificação de manifestações, crenças, simbolismos, filosofia e culinária
africana. De uma experiencia de morte, a recriação da vida. Como a capoeira,
por exemplo, que nasce dessa necessidade de sobrevivência tanto física, quanto
espiritual do africano, afastado de sua origem forçadamente.
O
resultado da história traçada pela colonização/escravidão é a herança do povo brasileiro
- sua balança humanitária sempre em desequilíbrio. É a falta de
representatividade negra nos principais cargos políticos do país; altos índices
de violência contra a mulher negra; altos índices de morte do povo negro; a
presença majoritária nas prisões brasileiras; a falta de representatividade do
negro na mídia e o uso de sua imagem como estereótipos, em frente a valores
"embranquecedores" presentes nesta sociedade, onde até os dias de
hoje o negro encontra-se à margem. À margem. Em estados liminares. Em estados
que ainda não foram compreendidos. Mas que começam a ser questionados. O tempo
e o mundo se movimentam e temos que nos movimentar com eles ou estagnamos o
fluxo da vida, tanto em aspecto individual quanto em sentido do coletivo.
Mo Maiê,
Itaparica/Salvador
(BA), março/junho de 2017
FONTES:
BEHRENDT, Stephen D. Sazonalidade
no tráfico de escravos transatlántico. 2008.
ELTIS, David. Um breve resumo do tráfico transatlântico
de escravos (Emory
University). 2007.
FU KI.AU, Bunseki. Ntangu, Tandu,
Kolo: o conceito bantu-kongo do tempo.
FU KI.AU,
Bunseki. Palestra realizada no III ENCONTRO INTERNACIONAL
DE CAPOEIRA ANGOLA Fundação Internacional de Capoeira Angola - FICA em Salvador
(1997)
GLASGOW, R. A. 1985 Nzinga: resistência
africana à investida do colonialismo português em Angola. 1582-1663.
MALANDRINO,
Brígida Carla. Espaços de Hibridações e de Diálogos Culturais: O Caso Bantú, Revista
de Estudos da Religião. 2009.
MALANDRINO, Brígida Carla. “Há sempre confiança de se estar ligado a alguém”: dimensões
utópicas das expressões da religiosidade bantú no Brasil. PUC SP, 2010.
http://linguaportuguesabyrogeriomarques.blogspot.com.br/2008/11/influncia-das-lnguas-africanas-no.html
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