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Abc da Mandinga, por Déi Ferreira


ABC da Mandinga
Por Déi Ferreira (Salvador da Bahia, Brasil)


"Mandinga de escravo em ânsia de liberdade,
seu princípio não tem método
e seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista."
Mestre Pastinha


Aruandê, aruandê, Camarado
Seja Iúna, Santa Maria
Banguela, Cavalaria*
No jogo fique ligado
Mandinga né só bailado
O berimbau quem governa
No que é braço é perna
No que é perna é braço
As palmas dão o compasso
Se é de irmão ou jogo à vera.

Baixou em nosso tabuleiro
Com acarajé e quiabada
Da África escravizada
Pra aqui receber tempero
E um nome bem brasileiro
Foi de capoeira batizada
Essa ginga mandingada
Que se hoje é conhecida
Foi muito tempo proibida
Dita marginalizada.

Chegou nas veias naufragas
Com os Bantos, Iorubá
E outros, todos filhos d’Obá
Co’as mesmas bocas amargas
Bebendo espumas e algas
Para no Brasil sangrar
Como um grito pra lutar
Contra a impossível corrente
Mostrar a pele reluzente
E no seu nariz governar.

Desenvolvida pelos pretos
Como ato de simulação
Pra despistando a atenção
Pegar o feitor de jeito
Com a polícia dava peito
Quando eles trocavam o pé
Pelas mãos em pontapé
De Salvador, Recife ao Rio
Logo tomou todo Brasil
A dança de bater com pé.

Em todo canto no cais
No canavial, na senzala
Na feira a capoeira exala
Nas ladeiras, cafezais
Nos trapiches, nos sobrais
Num aú, um rabo-de-arraia
Na lavadeira, na saia
Da mulata indo faceira
Nas praças, levanta poeira
Entre na roda ou se saia.

Famados por sua malícia
Foram muitos os capoeiras
Que a autoridade cabreira
Não queria saber notícia
E pra azar da polícia
Lhe deu a pá e a vassoura
Foi cabeçada, tesoura
Quase pro dia desabar
Seria mais fácil derrubar
Dom Segundo da coroa.

Ginga Valdemar, Besouro
Bimba, Pastinha, Trindade
Nobrezas da agilidade
São-nos todos grão tesouro
Chico-Juca, Mata-Mouro
Ximba Cabo da Escradão
Paquete, Benedito Cão
Duas Mortes, Olho de Vidro
Todos mestres perseguidos
Mesmo após a escravidão.

Houve um tempo antes da moda
Dizia-se coisa de cor
De “gentinha sem valor”
Tinha até lei contra a roda
Ata baixada na porta
Com pena de reclusão
Se estrangeiro extradição
Mal vista era a capoeiragem
Jogo de malandro vadiagem
Não tinha consideração.

Ia a biriba tranca-rua
Entoando afrontamento
Sem qualquer discernimento
Se metendo em falcatrua
Contra a própria gente sua
Por qualquer rés capital
Servia de “cabo-eleitoral”
Fazendo a cabaça de urna
Mas foi curta sua fortuna
Vestiu sombrinha o berimbau.

Já frevia Recife anunciando
Que é vem vindo o Carnaval
A capoeragem sem moral
Foi pros cantos se esquivando
Só mesmo se fantasiando
Com marcha e fitas de maxixe
Mais sei quê lá de tanto vixe
Faltava só o costureiro
Capiba chamaram ligeiro
E pegou fogo o Recife.

Lá para as bandas do Rio
Nem todo mês foi d’janeiro
Juca Reis o desordeiro
Foi preso entre outros vadios
Lacrou-se todo o covil
Não teve meia-lua-de-compasso
Chegou o “Cavanhaque de Aço”
Não adianta ao Deodoro apelar
“Se voltar vou lhe pelar
Sou Ferraz se digo faço!”.

Mergulhava nosso país
Sem bomba de oxigênio
Com a crise no engenho
E o café estando a um triz
Foi se virando nos quadris
Terminou tudo em República
Os negros nas vielas públicas
Morrendo de dor de dente
Velho escravo novo indigente
A senzala se fez pública.

Na Bahia dos males o menor
Por ser quase que folclórica
Mas para uma dança exótica
A mandinga se deu melhor
Mas toda cana tem seu nó
E lá não foi diferente
Besouro bebeu água-ardente
Mandou o patrão se lenhar
E fez a festa se acabar
Era o demônio nera gente.

O seu patrão Baltazar
Temendo aquele Besouro
Mangangá Cordão de Ouro
Mandou uns cabras lhe atocar
Assim que as costas virar
Com uma faca de tucu
Benzida por algum Icu
Mandinga não lhe salvou
Da traição do seu senhor
Foi para terra comum.

Passou-se o vento, até que em 30
Quando o então Getúlio Vargas
Acabou com essa lei vaga
Quis até folgar a sinta
E jogar co'o Mestre Bimba
A capoeira regionalizada
Por ele e alunos criada
Foi o alicerce pra novos dias
E logo foi sua academia
No ano trinta e dois fundada.

Quando era o “esporte nacional”
No Palácio do Catete
Com pimenta e muito azeite
Saiu das páginas policiais
Pra ares internacionais
O mestre Pastinha foi a asa
Europa, África chegou a Ásia
Com berimbau e pandeiro
Ecoou pelo mundo inteiro
Mas sempre a memória em casa.

Recordar Mestre Pastinha
De Manoel dos Reis Machado
Mestre Bimba como era chamado
Sem saudade ou nostalgia
São na feijoada a farinha
Se Mestre Bimba deu chão,
Pastinha deu o ar e dimensão
Pra nossa capoeragem
A estiaram com coragem
E dignidade no coração.

Se por acaso... de fato
O que posso dizer sei
É que a Bahia só se fez
Começar o primeiro ato
Mil seiscentos e vinte e quatro
Quando invadiu o Holandês
Foi por seis anos freguês
C’os senhores a brigar
Ficou o povo a aproveitar
E festa foi todo mês.

Tinha-se o terreno adequado
Pra mandinga se enraizar
E num lundum até raiar
Deu quilombo pra todo lado
Recôncavo entrando o estado
Té Palmares de Zumbi
Orobó, Tupim e Andaraí
Xiquexique, Urubu
Quilombo do Cururu
Pegando formas daí.

Uma hora é Chula, Calango
Maxixe, Samba-de-Roda
Se tem nega de saía fogosa
Tudo se acaba em fandango
É Maracatu, Jongo
Maculelê, Caboclinho
O Bumba-meu-boi o Chorinho
Puxada de rede, Afoxé
Outra é Hip hop com Axé
Camaleando seu caminho.

Vazou dos becos terreiros
Pra em nossa alma desaguar
Quase um gesto num olhar
Um afago hospitaleiro
Ou num abraço traiçoeiro
Ela é preta é avermelhada
O próprio Exu de encruzilhada
Mais que um jeito, todo um corpo
Desde o pé, cintura ao côco
É vida, morte anunciada.

X se não todo o alfabeto
Não por ser da questão o cerne
Toda uma raça não epiderme
Mas de uma coisa fique certo
De longe não é o mesmo perto
Como a moldura no quadro
É a roupa como o sapato
Se é o número e está na cor
Do gosto do comprador
A noite são todos pardos.

Zanga, ânsia de liberdade 
É sempre erguida a fronte
Mesmo vendado o horizonte
Sentir calor trás das grades
Sorrir na infelicidade
Nos braços da mãe chorar
Cansar e não se sentar
Trilhar na palma da mão
E com o dedo o seu chão
Dizer sem ter de falar.



* Iúna, Santa Maria, Banguela e Cavalaria são alguns dos toques da capoeira

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