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O colapso. O Kaos. A Violência. A Contradição Da Palavra Griô

Pintura de Oswaldo Roberto Griot (in memorian)


É ...

Talvez eu seja mesmo encarnação de contradições ... 

É o que muitas vezes sinto.

Sou a encarnação da contradição ...

Vivo num mundo contraditório, num país estruturalmente contraditório ... 

Vivo dentro dum sistema opressor e contraditório. 

Me expresso duma maneira contraditória ... se é linguagem falada ou se é linguagem escrita. 

A linguagem me paralisa num círculo vicioso e limitado, sem o sabor libertário e expansivo do espiral. 

A língua me atrapa, não me deixa alcançar uma plenitude de comunicação. 

A linguagem não me deixa me comunicar. 

Não consigo expressar com linguagem estruturada o que sinto. 

A língua limita meu pensamento. A palavra . A palavra estupra meu pensamento. É assim que me sinto. Como uma mulher estuprada. 

O outro não consegue entender o que eu quero dizer. Uma palavra mal dita e pronto - Lá evém pedrada. 

"A Kalunga é Violenta". Foi o que me disse um amigo.

Assim, ao mesmo tempo que sinto que não consigo me expressar como quero através da palavra, sinto necessidade de falar. Porque não posso mais me calar.

"A Kalunga é Violenta". Ele me disse.

Muitas dúvidas me dilaceram a alma. Foram muitos anos condicionada a ser uma pessoa enjaulada em padrões de pensamentos-desejos, muitos anos obrigada a engolir regras de um sistema que não representava minha essência ... e o pior: um sistema que me alijava da barca que é o meu próprio ser selvagem ... 

Gostei dessa palavra ALIJADA porque tem a ver com o mar. Tentaram me arremessar, me jogar pra fora da barca que sou eu mesma. 

Tentaram me dizer quem eu POSSO ser só por causa de uma palavra mal dita. 

Maldita Palavra. 

Sou a encarnação da contradição. 

É o que muitas vezes sinto.

Sou filha de mãe branca e de pai negro embranquecido.

Sou neta de vô negro silenciado.

Sou neta de filho de sírio refugiado.

Sou bisneta de cabocla.

Sou neta de vó cigana que renega as próprias raízes. 

Me sinto africana mas tudo que fiz foi nascer em Mariana, no frio das montanhas catequisadas  ...  exploradas ...  sacrificadas. 

Tudo que fiz foi nascer nessa Terra colonizada, Que me deu de herança as mazelas e consequências e reticências de colonizações, colisões ... 

Em Mariana nasci e aqui fiquei até que consegui cair no mundo.

Parecia que sempre guiada por um impulso ancestral de reencontrar, de voltar a percorrer caminhos percorridos por meus antigos ...

sim ... Mas então ... por que você tá me contando sua vida? - você pode estar pensando...

Só estou TENTANDO falar da minha própria vida porque nesse exato momento parece ser a única coisa sobre a qual posso TENTAR falar. 

No agora. 

E o pior de tudo: como tamo falando da essência violenta da contradição, a palavra que me fere é ela mesma, a palavra, aquela que me trás a cura. 

como a vacina, que é gerada da alquimia do veneno.

A palavra é minha SINA.

Depois de haver me deixado bloquear por outras pessoas. 

Depois de haver me deixado domar por outras pessoas.

Depois de haver sido censurada. 

Por causa de uma palavra ... 

Depois disso tudo ... é só com outras palavras que eu vou conseguir me redimir e me salvar.

Porque a palavra encarnada tem também encantamento.

É por isso que a palavra se aproxima da música. 

Por causa do Seu Poder de ENCANTAR.

É ...

Talvez eu seja só uma pessoa que não sabe escolher bem palavras e pronto.

...

Griô, por exemplo ... por que essa palavra foi parar na minha língua ? 

... trazendo mais contradição e encruzilhadas ... 

... abrindo espaço para mais violência ... 

como um fardo pesado que a própria pessoa não escolhe, 

mas é obrigada a ir arrastando pelo tempo afora ...

Mas acontece que essa palavra - griô - chegou por causa da música e da ancestralidade, o que eu entendi quando compreendi que meu avô músico, o finado mestre Gegê, era um griô. inclusive hoje é 16 de maio, dia do aniversário dele... quem sabe não esteja me inspirando a colocar tudo isso pra fora com as palavras, mesmo sabendo que as palavras não dão conta...

Enfim ... é por isso que eu ainda respeito, porque a Música é a única língua que consegue transpôr a essência da minha alma.



O que não quer dizer que eu me sinta confortável quando falo essa palavra. 

...

Me lembro que quando caí no mundo, meus pés tocaram caminhos de povos nômades ... 

Até que um dia as águas da Kalunga me levaram até uma Ilha, onde por primeira vez ouvi o som de um instrumento chamado Kora. 

E nunca mais consegui ser a mesma pessoa de antes. E senti forte que precisava voltar ... mas para a terra onde havia nascido nesta vida. 

E foi assim que voltei para Mariana. Pela primeira vez, voltava em busca de ancestralidade, de conexão vital, tentando compreender para onde meus ancestrais olhavam ...

Depois o tempo se passou e outra vez meus pés e a inquietação de meu peito me levaram para terras distantes ...

era a Bahia, por fim ... 

foi lá que tive um sonho ... num terreiro de terra batida, me falou um mestre ... Você precisa tocar uma Kora ... precisa ... sua Alma precisa tocar ...

Mas nem tanta Kora assim tinha na Bahia e aquele sonho seguiu me inquietando por muito tempo ... 

Até que tive que decidir fazer minha própria Kora, para ver se conseguiria assim chegar ... 

aonde precisava ...

Só que ainda não consegui. 

Consegui a cabaça. o couro. as cordas. o ferro. 

Mas fui paralisada por causa dos balanços violentos da Kalunga.

Os balanços violentos da colonização. Tentaram e estão tentando me decepar.

Decepar o impulso de Amor que há em Mim.

Mas enfim ... resulta que quem toca a Kora na Africa Mandengue é o Djeli. Conhecido aqui como o Griô.

Só que Griô é uma palavra contraditória também. 

Essa palavra que venho carregando há anos aqui nesse mesmo blog, onde agora estou plasmando meu sentimento de dor por ser um ser com identidades problemáticas, por ter sido designada pelos balanços da própria vida para resguardar a beleza e força de tanta coisa tão maior que eu, coisa tão imensa que a linguagem não dá nem conta de compreender, que dirá traduzir em palavra...

Assim que a palavra Griô vem da palavra griot, uma palavra aportuguesada, usada pelos franceses para chamar os Djelis, os mestres das tradições orais e do conhecimento ancestral dos povos que falam línguas mande na Áfrika Ocidental ... 

Em seu sentido original griot era usado para se referir a servos ... 

Enquanto djeli é uma palavra que quer dizer sangue ... 

assim como o sangue leva o fluxo vital para todo o corpo, o djeli esparrama fluxo - comunicação ... sangue memória viva em movimento em sua comunidade e na natureza que lhe arrodeia.

Fluxo. Movimento. 

a palavra é a flecha do djeli. 

e como flechas, os mestres das tradições africanas, os djelis se espalharam pelo mundo afora, se misturando com outros djelis, que em outras línguas tinham diferentes nomes ...

e a palavra griot ficou, impregnada de contradição...

e foi assim que ela chegou aqui no Brasil 

e foi re-contextualizada.  

e virou griô. 

e está sendo, constantemente, ressignificada.

e me lembro que foi em 2012 quando fui morar em Salvador e queria pensar num nome inspirador pra este trabalho de pesquisa ...

e foi assim que veio o terreiro de griôs, por causa do amor pelo som da kora. 

e pelo amor pela memória, pela ancestralidade ...

O mais surreal foi que na semana seguinte que escolhi o nome para este blog, fui morar na rua do passo, 48. 

lá no pelourinho, em salvador.

era um casarão antigo, com um terreiro bonito atrás, que dava pra Bahia de todos os santos ...

e no andar debaixo do nosso, morava um pintor chamado Grióti ...

aí eu senti que no momento, este era o fluxo orgânico de meus caminhos, 

o terreiro de griôs ... 

e aceitei ... 

e com esta palavra, todas as portas que ela me abriu 

e todas as facadas que eu levei por causa dela.

Aonde tudo isso vai dar ainda não sei. 

Mas eu tampouco posso desaparecer fingindo que nada disso aconteceu até agora.

Os movimentos contínuos da Kalunga nos relembram que é tempo de transmutar. É tempo de transformar toda a miséria herdada da escravidão em instrumentos de luta de libertação. E foi exatamente isso o que os ancestrais fizeram. 

.
.
Mo Maiê, Mariana, 16 de Maio de 2018


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