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cosmopercepção bakongo



“O mundo natural é o que nós vemos, tocamos, sentimos, saboreamos e ouvimos e ainda assim nós não podemos alcançar o significado em sua totalidade. É o mistério de todos os mistérios. É o cerne do que é espiritual e sagrado. É o ligar e desligas de todas as coisas, Nkingu kibeni wangudi wa kinenga mu biobio (a chave princípio do equilíbrio em tudo)” FUKIAU
Este termo “cosmopercepção” foi introduzido no debate acadêmico pela pensadora nigeriana
Pyerónke Oyewumí, a fim de problematizar o conceito de “cosmovisão”, enraizado no pensamento
eurocentrado.
“O termo “cosmovisão”, que é usado no Ocidente para resumir a lógica cultural de uma sociedade, capta o privilégio ocidental do visual. É eurocêntrico usá-lo para descrever culturas que podem privilegiar outros sentidos. O termo “cosmopercepção” é uma maneira mais inclusiva de descrever a concepção de mundo por diferentes grupos culturais. Neste estudo, portanto, “cosmovisão” só será aplicada para descrever o sentido cultural ocidental e “cosmopercepção” será usada ao descrever os povos iorubás ou outras culturas que podem privilegiar sentidos que não sejam o visual ou, até mesmo, uma combinação de sentidos”. (Oyěwùmí, 2002, pag. 392)

Segundo o pensador kongolês Bunseki Fu Ki.Au, 

“Kongo” refere-se a um grupo cultural, linguístico e histórico de pessoas que descendem do grande grupo niger-kongo que migrou do sul da região do Rio Benue (atualmente Nigéria) para a floresta equatorial do centro-oeste africano e proximidades. 
Remontando ao segundo milênio A.C., lentamente aconteceram ondas migratórias de comunidades em direção ao sul, processo que fez com que a maioria dos africanos que vivem na região ao sul do equador viessem a falar uma ou mais das 400 línguas relacionadas ao tronco niger congo.
Poucos séculos depois, na Idade do Ferro, assentamentos de Bantu foram estabelecidos através da região. O passado, as origens e história em comum, além de mais de meio milênio de relações de trocas, fizeram surgir uma afinidade entre as tradições culturais, sistemas de crenças e conceitos acerca do tempo entre o Kongo e os outros grupos Bantu."

Herdeiros do antigo Reino do Kongo, atualmente encontram.se pelo sul da Republica Democrática do Kongo, Zaire, Tanzania, norte de Angola, sobretudo nas províncias de Cabinda, Zaire e Uíge.


Bunseki Fu Ki.Au veio ao Brasil trazendo através de sua palavra e sua presença as bases filosóficas de seu povo bakongo, pensamentos que por muitos séculos foram extraviados ou escondidos por causa da colonização da África e das Américas e dos movimentos do tráfico negreiro. Ele veio nos ensinar filosofia da raíz de um dos principais povos que povoaram o Brasil, devido aos fluxos das viagens transatlânticas.

Os povos do niger-kongo eram altamente tecnológicos e possuíam refinadas concepções do mundo.
Especialmente o povo bakongo, baseava o entendimento da vida em uma mandala chamada de Dikenga, ou Cosmograma Bakongo. Nesta mandala, que acompanha o movimento do sol, está a representação de sua cosmovisão de mundo regida pelos ciclos do tempo.

Segundo Fu Ki.Au, "O tempo para o povo Kongo é uma “coisa” cíclica. Não tem um começo nem um fim. Graças aos “Dunga” (acontecimentos), o conceito de tempo é entendido e pode ser compreendido. Esses “dunga”, sejam naturais ou artificiais, biológicos ou ideológicos, materiais ou imateriais, constituem o que é conhecido como “n`ka-ma mia ntangu” em Kikongo, que significa “represas do tempo”. São essas represas do tempo que tornam possíveis tanto o conceito quanto a divisão do tempo entre os Bantu-Kongo. Assim, o tempo é, ao mesmo tempo, concreto e abstrato. No nível abstrato, o tempo não tem começo nem fim. Ele existe por si só e flui através dele mesmo, com seus próprios acordos. No entanto, em nível concreto, são os “dunga”(acontecimentos) que fazem com que o tempo seja perceptível, provendo o fluir interminável do tempo, com específicas “represas”, acontecimentos ou períodos de tempo".

Então vem os quatro ciclos cósmicos do Cosmograma Bakongo. Cada corpo (mundo, planeta) no universo possui seu próprio tempo cósmico, seu próprio processo de formação. 

"Entretanto, as antigas escolas de iniciação Bantu-Kongo pensavam que todos os processos cósmicos do tempo englobam quatro grandes passos, para os quais tudo na vida é subjetivo, inclusive os sistemas. A Cosmologia Bantu ensina que para completar seus processos de formação ou dingo-dingo, um planeta precisa atravessar esses quatro estágios ou “represas do tempo” (n´kama mia ntangu) chamados de Tempo Musoni, Tempo Kala, Tempo Tukula e Tempo Luvemba." (FU KI.AU, Ntandu, )
MÛSONI
O primeiro ciclo se chama Mûsoni, que é o começo de todos os tempos. A mitologia tradicional Kongo refere-se a tal período como Tandu Kia Kuku Lwalamba Kalunga (literalmente, “o período do cozimento da Kalunga”), a era fervente da matéria magmática (Fu-Kiau 1969, pp. 17-27). Esse é o período durante o qual o vazio(luyalungunu) encheu-se de matéria em fusão. Esse foi o início do kele-kele dia dingo-dingo dia ntangu ye moyo, “a faísca dos contínuos processos do tempo e da vida” em todo o universo; é a colisão das colisões (o Big Bang). 
KALA
Kala é o segundo estágio da formação dos planetas e de suas transformações (Figura 2.1). Depois que se completou o ciclo do resfriamento da Terra veio o estágio do tempo Kala (Tandu Kia Kala). Durante essa era a Terra presenciou grandes transformações. A vida em sua forma mais primitiva – seres microscópicos (zie), algas – começou a existir (Kala) nesse período. O solo era úmido e a água podia ser encontrada em todas as partes. O negro é a cor simbólica dessa era, a segunda grande “represa” do Tempo (n´kama wanzole wangudi wa ntangu). 
TUKULA
O tempo Tukula é o terceiro estágio da formação dos processos dos planetas (mundos) e de suas transformações que seguem a era Kala. Nesse período do tempo Cósmico, nosso planeta amadureceu (Kula). A vida que existia durante a antiga era Kala amadureceu e prosperou. Os animais também surgem em um ponto da era Tukula.
LUVEMBA
Esse é o quarto estágio e último período ou era pela qual um planeta passa para completar seu processo de formação e transformação, e ele segue o tempo Tukula. De acordo com a escola de ensino superior Bantu-Kongo, durante essa era, Maghûngu existiu no planeta. 
Maghûngu  era um ser andrógeno, completo por si só. Esse ser mitológico era “dois em um”, macho e fêmea. Através de contínuas buscas por rituais, Maghûngu foi cortado em dois seres separados: Lumbu e Muzita (fêmea e macho). Nesse momento, o planeta Terra tornou-se vivo por inteiro, completo por si só. Lumbu  Muzita, para manter a unidade de quando eram Maghûngu, decidiram permanecer juntos durante a vida (casados). Tornaram-se mulher e marido (n´kento ye bakala)(Fu-Kiau 1969, pp.17-27). Com esse novo começo de vida, o ciclo cósmico do Tempo completou-se (Figura 2.1) e um novo estágio de tempo iniciou-se – o tempo vital.




FONTES:
http://terreirodegriots.blogspot.com.br/2016/12/ntangu-tandu-kolo-o-conceito-bantukongo.html
http://www.south-africa-tours-and-travel.com/bantu.html


MÚSICA NA ÁFRIKA NIGER KONGO



A linha de Kalunga, os fluxos desta Kalunga vão me levando pelos mares atlânticos.....
Vou seguindo as linhas de navegação sem pressa, honrando e agradecendo. 

Comecei por lá de cima do continente e parece que fui descendo, descendo. Até que a vida me levou para os caminhos da Áfraka Bakonga.

Tudo partiu do campo dos entendimentos e pesquisas ao redor de cosmopercepçoões e mitologias africanas, da cultura popular e, especialmente, da Capoeira Angola. 

E foi se adentrando de uma maneira tão profunda nas pesquisas musicais que agora sinto-me em um labirinto em que não consigo mais sair. 

Mas pouco a pouco, dia após dia vou sintonizando minha mente às mensagens dos ancestrais e me entregando ao caminho. Aceitando e agradecendo.

Estou há um tempo concebendo uma vivência que une filosofia bantu, música e consciência corporal. Percebendo a necessidade de ancorar os trabalhos desta vivência em uma família de instrumentos musicais, minha caminhada vem me levando aos arcos africanos, aos lamelofones e às harpas ...

Cheguei desta vez, depois de muita meditação, ao precioso instrumento musical chamado Ngombi, um instrumento de cordas, uma harpa, muito comum no Gabão. O Ngombi é usado durante os rituais de Bwit, religião do povo Mitsogo, neste país.

A África é muito conhecida por seus tambores, mas pouco se fala da riqueza das cordas africanas. Isso bem me disse um amigo de Guiné Bissal.

Mas a Harpa existe desde os tempos do antigo Egito, Kemet, a terra negra. As antigas harpas de Kemet datam de mais de 5.000 anos e eram usadas no dia a dia e nos rituais desta antiga civilização.

Harpa do Antigo Egípcio. 

Pouco falamos sobre um país tropical chamado Gabão, situado na costa atlântica na África Equatorial Central, fazendo fronteira com Camarões, Congo e Guiné Equatorial.

Parte do Império Bakongo, o Gabão é herdeiro de inúmeras tradições ancestrais, dentre estas um instrumento chamado , instrumento que participa dos rituais religiosos Bwiti, comum tanto nas selvas do interior do país, quanto na costa. Dizem que o instrumento chamado Ngombi surgiram das antigas harpas egípcias.


Gabão, África

Conta-se que nos últimos 20 anos o Bwiti atravessou fronteiras e chegou a Camarões, Congo, Zaire e Guiné. 

Bwiti é considerado por seus membros como uma religião universal monoteísta, acessível a qualquer pessoa.

De acordo com a cosmogonia Bwitista, as propriedades alucinógenas do iboga foram descobertas pela primeira vez pelos pigmeus no interior da selva. Estes passaram seu conhecimento para os Apindji e os Mitsogo, que iniciaram os primeiros rituais Bwitistas. Mais tarde, estes conhecimentos foram transmitidos para os Fang, Eshira e outros grupos étnicos em todo o sul do Gabão.

Devido à sua contínua reforma, o Bwiti original assumiu certas características de outro culto ancestral chamado de Byeri, em cujos rituais um alucinógeno diferente foi usado, alan (plural, melan).

O Byeri defende um culto privado praticado pelos descendentes de famílias patrilineares. No clímax da cerimônia de iniciação, o iniciado, sob a influência de uma dose forte em toda a raíz, foi mostrado o crânio de seus antepassados, e ao ver isso, ele poderia se comunicar com os espíritos do morto.

Por muito tempo o Bwiti foi considerado um culto ancestral e até hoje, a palavra Bwiti é traduzida como morto ou antepassado. No entanto, a etmologia pode vir de "Mbouiti", o nome de um grupo de pigmeus atualmente ocupando uma região entre o Gabão e o Zaire.
O ngoze, ou cerimônias noturnas costumeiras são tempo de fervor religioso, coletivo, alegria, banquete, quando preparam o iboga. Também momento de amar uns aos outros.
Durante a noite, os participantes dançam, brincam e cantam. Vestem-se com diferentes cores, branco, azul, amarelo, de acordo com as cores de sua própria comunidade ou o dia da semana. Com os rostos pintados por cau branco, caem sob os efeitos do iboga e dançam, tocam e cantam por longas horas e exaustivas danças do mais puro espírito tribal afrakano.

As danças são guiadas por esquemas coreográficos precisos. A dança mais comum é uma longa fila de pessoas que se movem no interior do homem-templo. Cada pessoa repete o movimento da pessoa na frente. Tudo isso ao ritmo de vários instrumentos musicais: o arco musical, bastões e outros instrumentos de percussão e durante a segunda parte da noite, a harpa sagrada (ngombi). De vez em quando eles descansam, bebem, riem e ficam felizes.

Ngombi, instrumento de cordas da Áfraka Equatorial Central

Durante a última parte da cerimônia nas primeiras horas da manhã, toda a comunidade experimenta um fluxo coletivo de emoções, resultando no que os Bwitis chamam de "nlem myore" (um só coração), um estado em que as pessoas se entendem e tornam-se um em comunhão.

Na mitologia Bwitista está a existência de um único Deus, Nzame Mebeghe, um deus semelhante ao cristão, ainda menos irritado e vingativo (não existe um inferno). No começo dos tempos, Nzame criou um ovo do qual nasceram Eyene, None e Gningone.

Gningone é uma entidade feminina, considerada a mãe da raça negra. Entre os Fang, bem como entre outros grupos africanos, tudo relacionado à mãe --terra, ao princípio feminino mantém seu valor primário ligado à fecundidade.

A história de Muma, a história da descoberta de iboga e a origem do Bwiti tem diferentes versões, não apenas entre os Fangs, mas também entre os Apindgi, Mitsogho e Eshira.

Fontes: www.myeboga.com/eboga/the-bwiti-iniciation
www.ibogaine.mindvox.com/articles/bwiti-religion/




::: África Níger Kongo e a Colonização do Brasil ::: 

De onde eram os africanos escravizados que vieram para o Brasil? (parte 2: contribuição Níger Kongo) :::


Neste artigo vamos falar do povo Bantu, já que o Kongo, junto com outros estados do centro-oeste africano, tornou-se a região da África em que os europeus obtiveram a maioria dos escravizados que cruzaram o Atlântico para trabalhar nas plantações, nas construções urbanas e minas das Américas durante os três séculos e meio do tráfico negreiro, do século XVI ao século XIX.
 “O tráfico de escravos interferiu negativamente no sistema social angolano, rompendo com o padrão de vida bantú e com seu sistema tradicional de entendimento do mundo: “Criada e desenvolvida como um complemento econômico do Brasil, a principal função do Ndongo, ou seja, o fornecimento de seres humanos à colônia brasileira, violentou a forma interna de sujeição e servidão, que fora caracterizada como escravidão pelos europeus”. (GLASGOW 1985:48 apud MALANDRINO, 2009)
Os portugueses invadiram e passaram a controlar territórios costeiros de Angola (como o Porto de Luanda e o Porto de Benguela), território em que na era do tráfico transatlântico, foi de onde mais saíram - forçados - africanos para o Brasil.
Para David Eltis, “durante quatro séculos, desde meados do século XV até 1867, os europeus não estavam preparados para escravizar-se mutuamente, mas estavam dispostos a comprar africanos e a mantê-los escravizados, a eles e seus descendentes. Levando-se em consideração que a “África” praticamente não existia para os africanos enquanto conceito em qualquer sentido antes do século XIX, a maioria das pessoas que viviam no subcontinente ao sul do Saara (como na Europa) estavam dispostas a escravizar outras de sociedades adjacentes ou distantes”. (ELTIS, 2007)
Se é certo a colocação de David Eltis de que não havia um concenso geral por parte dos africanos sobre o seu pertencimento a um mesmo continente, por outro lado a história tem provas de que existiram na África grandes reinados ou impérios, desde os tempos mais remotos. Um dos maiores destes Reinos chamou-se Reino Bakongo. Isto nos interessa, porque é este o reinado do povo Bantú e do povo Kongo.
Para pensarmos sobre a África, é fundamental termos em conta sua enorme diversidade étnica, resultado de inúmeras mesclas que aconteceram no decorrer da história da formação social deste continente, sempre marcado por constante fluxos de migração.
Fu Ki.Au, pensador congolês, nos diz que “remontando ao segundo milênio A.C., lentamente aconteceram ondas migratórias de comunidades Bantu saindo do sul da região do Rio Benue, na Nigéria, em direção ao sul, para a floresta equatorial do centro-oeste africano e proximidades, processo que fez com que a maioria dos africanos que vivem na região ao sul do equador viessem a falar uma ou mais das 400 línguas relacionadas ao Bantu”.
Por volta do século XIII ao século XV, nos tempos do auge do Reino do Kongo, em que os bakongos desenvolveram tecnologias altamente avançadas para trabalhar o ferro, complexos sistemas de troca, cultura agrária e instituições políticas, os europeus foram adentrando-se em seu território e, pouco a pouco, passaram a impor suas crenças religiosas, explorar seus bens naturais, realizar repressões ideológicas, culminando no declínio deste império que, fragmentado, originou três estados “controlados por portugueses, belgas e franceses, de 1880 até a independência nos anos 60 e 70 do século XX, quando os territórios coloniais se tornaram as nações modernas de Angola, Zaire e República do Congo, respectivamente”. (FU KI.AU, Ntangu, Tandu, Kolo: o conceito bantu-kongo do tempo)

A primeira viagem negreira  da África para as Américas provavelmente ocorreu em 1526. Do lado africano, a grande maioria das pessoas envolvidas nos primeiros tempos do tráfico de escravizados vinham da costa da Alta Guiné, tendo passado inicialmente pelas feitorias portuguesas na Mauritânia e mais tarde nas ilhas de Cabo Verde. No entanto, a viagem de 1526 partiu de outra grande feitoria portuguesa na África Ocidental — São Tomé, no golfo de Biafra — embora seja quase certo que os escravos eram provenientes do Kongo.
O tráfico de escravizados para o Brasil, que acabou sendo responsável por cerca de 40% do comércio negreiro, teve início em torno de 1560. O açúcar impulsionou esse tráfico, à medida que os africanos foram substituindo a força de trabalho indígena utilizada nos primeiros engenhos de açúcar, entre 1560 e 1620. Quando os holandeses invadiram o Brasil em 1630, Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro estavam fornecendo quase todo o açúcar consumido na Europa, e quase todos os escravos que o produziam eram africanos. (ELTIS, 2007).
No final do século XVII, as descobertas de ouro, primeiro em Minas Gerais e mais tarde em Goiás e em outras partes do Brasil, deram início a uma transformação no tráfico de escravizados, que provocou uma expansão ainda maior desse comércio.
Na África, além de Angola, os golfos de Benim e Biafra tornaram-se grandes fontes de abastecimento e a eles se uniram mais tarde as zonas mais marginais de Serra Leoa, Costa do Barlavento e sudeste da África.
Se formos parar para pensar que o principal grupo linguístico da África que influenciou a criação da língua brasileira foi o “BANTU” (da família linguística Níger-Congo), consequentemente, devemos reconhecer intensa presença de africanos Bantus na formação do povo brasileiro.
A partir dos intensos fluxos da diáspora negra, o destino do Kongo e do “Novo Mundo” se entrelaçaram pelos próximos séculos.
“Os grupos de tradição bantú chegaram muito precocemente ao Brasil, sendo que vários aspectos de sua tradição foram assimilados, ressignificados e naturalizados dentro da cultura brasileira. A tradição bantú possui uma lógica popular, mas trás em si muitas especificidades. Nesse sentido, lembrar que durante a escravidão, entre 1690 e 1850, os portos angolanos e os portos da Costa de Mina foram os fornecedores de escravizados para o Brasil”. (MALANDRINO, 2010)
No entanto, ainda que tenham sido dos primeiros africanos a chegarem no Brasil e dos mais numerosos a virem para cá ao longo da história da diáspora Africana, pouco se fala sobre a importância da contribuição dos Bantús para a criação da identidade do povo brasileiro, seja na criação de nosso vocabulário, da música popular, da capoeira, das manifestações religiosas, das técnicas mineradoras, da culinária ...
A África Centro Ocidental foi “a grande área fornecedora de escravizados, não só nas incursões juntos aos povos do litoral, mas também em cidades localizadas ao longo da costa. (…)  Portanto, entre os séculos XVI ao XIX, foi em torno do tráfico de escravos que se deu a relação entre os africanos, com destaque para os angolanos, e os europeus, com destaque para os portugueses. Cabe notar que esse contato foi regido por relações desiguais de poder.” (MALANDRINO, 2009)
O tráfico negreiro passou a ser uma das atividades estruturais de alguns territórios africanos, dentre estes, Angola e Kongo, e passou a ser aceito socialmente, abalando profundamente os indivíduos e a sociedade bakonga, no geral.
 Com a sociedade desestabilizada e enfraquecida, de onde foram arrancados as pessoas mais fortes e os maiores mestres e conhecedores dos mistérios de sua filosofia e cultura, as famílias Bantú foram destruídas e seus membros separados uns dos outros, rompendo a ordem natural dos ciclos vitais deste povo, para o qual a “vida só existe pela e na comunidade.” (MALANDRINO, 2009)
Em uma palestra realizada em 1997 em Salvador, o pensador congolês Fu Ki-Au nos fala:
 “Mais de 40% dos escravos trazidos para as Américas vieram desta região em particular (Kongo). É bem infeliz para nós, porque o mercado de escravos destruiu totalmente este reino. Os maiores Mestres que existiam nesse reino foram levados. Todos os jovens entre 15 e 25 anos também foram levados e o pior: quando eles chegaram no Novo Mundo, por causa do tratamento que eles receberam, esses Mestres… todos esses Mestres que tinham esse conhecimento, tiveram que morrer. Eles morreram durante a travessia do Atlântico: quando chegaram na terra foram submetidos a trabalhos forçados, e os que não queriam se submeter, tiveram que lutar. E como eles não tinham armas, como os senhores, eles começaram a se organizar de maneira secreta. Nessa medida eles começaram a entender os poderes que eles tinham adquirido na África. E a capoeira nasceu no Brasil”. (FU Kiau, 1997)
O ser humano trás dentro de si enorme capacidade de regeneração e superação.  E assim, é da destruição de todo um império que nascem novas formas e manifestações de cultura, arte e práticas sociais no novo mundo.
O povo bantú se relaciona com a morte e com os ciclos do tempo e da vida de uma maneira muito particular. A morte não é um fim, é uma passagem para um recomeço. A diáspora trasatlântica possibilitou a ressignificação de manifestações, crenças, simbolismos, filosofia e culinária africana. De uma experiencia de morte, a recriação da vida. Como a capoeira, por exemplo, que nasce dessa necessidade de sobrevivência tanto física, quanto espiritual do africano, afastado de sua origem forçadamente.      
O resultado da história traçada pela colonização/escravidão é a herança do povo brasileiro - sua balança humanitária sempre em desequilíbrio. É a falta de representatividade negra nos principais cargos políticos do país; altos índices de violência contra a mulher negra; altos índices de morte do povo negro; a presença majoritária nas prisões brasileiras; a falta de representatividade do negro na mídia e o uso de sua imagem como estereótipos, em frente a valores "embranquecedores" presentes nesta sociedade, onde até os dias de hoje o negro encontra-se à margem. À margem. Em estados liminares. Em estados que ainda não foram compreendidos. Mas que começam a ser questionados. O tempo e o mundo se movimentam e temos que nos movimentar com eles ou estagnamos o fluxo da vida, tanto em aspecto individual quanto em sentido do coletivo.
 Mo Maiê,
Itaparica/Salvador (BA), março/junho de 2017
FONTES:
BEHRENDT, Stephen D. Sazonalidade no tráfico de escravos transatlántico. 2008.
ELTIS, David. Um breve resumo do tráfico transatlântico de escravos (Emory University). 2007.
 FU KI.AU, Bunseki. Ntangu, Tandu, Kolo: o conceito bantu-kongo do tempo.
 FU KI.AU, Bunseki. Palestra realizada no III ENCONTRO INTERNACIONAL DE CAPOEIRA ANGOLA Fundação Internacional de Capoeira Angola - FICA em Salvador (1997)
GLASGOW, R. A. 1985 Nzinga: resistência africana à investida do colonialismo português em Angola. 1582-1663.
 MALANDRINO, Brígida Carla. Espaços de Hibridações e de Diálogos Culturais: O Caso Bantú, Revista de Estudos da Religião. 2009.
 MALANDRINO, Brígida Carla. “Há sempre confiança de se estar ligado a alguém”: dimensões utópicas das expressões da religiosidade bantú no Brasil. PUC SP, 2010.
http://linguaportuguesabyrogeriomarques.blogspot.com.br/2008/11/influncia-das-lnguas-africanas-no.htm



                                           

                                           








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