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Reflexões de uma quarta-feira de cinzas



Estou em estado de ebulição. Em busca. Em busca de movimentos e sonoridades que me ajudem a conectar com minhas raízes ancestrais, bem como com as raízes ancestrais do povo brasileiro.

Sou um ser híbrido, em busca de me entender dentro do caldeirão cultural/social/político chamado Brasil.

Necessito sobreviver neste corpo. Nesta ilha. Neste país. 

Por isso, busco dentro de mim este lugar-grito, este lugar-útero, esse lugar-ouvido, este lugar-rito, onde consiga criar mecanismos de auto-libertação de padrões e códigos coloniais, que por muito tempo congelaram nossos corpos brasileiros e nos separaram em estratos sociais, impedindo que houvesse uma real igualdade social e racial em nosso país, bem como a valorização da participação fundamental da comunidade africana e afro-descendente na criação da história, da cultura e da identidade do Brasil. 

(Por enquanto estou falando de africanidades. Mas ainda nem comecei a falar na questão indígena. Guardarei essas reflexões para outro momento.)

O resultado histórico dessa realidade é a herança do povo brasileiro e sua balança humanitária sempre em desequilíbrio - todos já estamos carecas de saber mas muitos fingem não haver percebido: a realidade é a falta de representatividade negra nos principais cargos políticos do país, o alto índice de morte do povo negro, a presença majoritária nas prisões brasileiras, a falta de representatividade do negro na mídia e o uso de sua imagem como estereótipos, em frente a valores "embranquecedores" presentes nesta sociedade, onde até os dias de hoje o negro encontra-se à margem. À margem. Em estados liminares. Em estados que ainda não foram compreendidos. Mas que começam a ser questionados. Já era tempo!

Percebo que estamos no momento onde essa realidade está se transformando. 

Fu Ki-Au, pensador e estudioso congolês nos fala que, para o povo Bakongo, "onde não há problema, a vida não acontece". 

Então é sobre isso que venho refletindo muito nos dias atuais e durante este carnaval (em que passei em estado de reclusão, cuidando de sete crianças): as frequentes discussões sobre atitudes de preconceito, de racismo, apropriação de cultura, formação de identidade cultural/social que nos bombardeiam as redes sociais, estão no fundo nos mostrando que algo está se transformando no Brasil. 

Que a noção estrutural herdada do período escravocrata do "Dominado/Dominante" está sendo questionada porque já é insustentável. Estamos no século XXI e precisamos resolver esses aspectos podres da estrutura da sociedade brasileira para passarmos para uma nova página. Para que não nos aconteça mais de vivermos em país democrata, onde a ditadura se instaura de um dia para o outro e o povo simplesmente dá de cara com essa triste realidade que vem desde os primórdios, desde os tempos da invasão das américas: os políticos que estão no poder (em sua maioria homens brancos) não conhecem a realidade e as necessidades do povo, não estão prontos para representar essa nação.

Em alguns momentos, é preciso botar lenha na fogueira, sim. É preciso chamar a guerra e guerrear. Porque temos traumas históricos que não foram resolvidos. Temos dívidas cármicas que não foram ressarcidas. 

Nosso sistema político/social é falido e enquanto não compreendermos que, se não tratarmos dos traumas sociais que essa nação viveu desde o começo da invasão de Pindorama, nada vai mudar. 

Por isso, precisamos conhecer a história das principais culturas que marcaram a criação de nosso povo brasileiro. E criar sistemas de educação que valorize estas culturas que até então foram marginalizadas, estiveram à margem desta sociedade. Mas não simplesmente trazer alguns símbolos destas culturas para um dito "centro" e deixar seus herdeiros primordiais à margem. Não. Precisamos falar desta história. Destas culturas e abrir o fluxo para o povo preto do Brasil poder caminhar para qualquer lado destas estruturas sociais. Se quiser chegar ao centro, que chegue, se quiser chegar à periferia, que chegue. Se quiser, e não simplesmente porque historicamente assim foi imposto aos seus pais, aos seus avós, bisavós, tataravós. Precisamos ter caminho livre para fluir. Para nos reencontrarmos, nos conhecermos de outra maneira. Sem preconceito. Sem racismo. Sem muros que nos impuseram e nunca pensamos sobre eles.

Aqui não se trata de nos apropriarmos de uma cultura que não tem nada a ver conosco. Somos todos filhos da fusão. Ainda que não tenhamos a pele negra, são poucos os brasileiros que não possuem ancestralidade negra, preta, como diria Roberto Oswaldo Griot, grande amigo e pensador da "Arte Preta". Griot sempre falava que ser brasileiro é ter uma energia própria. Potencialmente, temos a energia da transformação que o mundo precisa. No entanto, tal potência encontra-se adormecida, porque insistimos em permanecer em nosso estado de letargia, uns contra os outros, assim como fizeram os traficantes negreiros: colocando pessoas de diferentes povos dentro de um mesmo barco, pensando que assim, eles não poderiam se falar. Mas o resultado foi o contrário: do encontro de africanos de línguas diferentes nasceu outra língua! E na linguagem da música, nasceu o samba! Foi assim que a arte serviu para unir povos distintos que caíram em um mesmo barco. Estamos todos juntos num mesmo barco e não podemos mais jogar uns contra os outros. Porque é isso que o sistema quer: nos ver fracos, inimigos, enfraquecidos, porque quando o povo está debilitado, é mais fácil dar o golpe. Porque o povo não tem união. Brigamos entre nós mesmos, enquanto poderíamos nos aliar, dando o valor que cada um merece e assim, mais fortes, lutar contra os verdadeiros inimigos.

Sabe, finalizando essa reflexão quero aqui declarar meu amor pela cultura popular brasileira. Porque foi aqui nesse lugar onde eu renasci como brasileira e como ser humano. Foi aqui onde comecei a questionar alguns padrões comportamentais que costumava obedecer, vindo desta realidade de mulher fenotipicamente branca, de classe média no Brasil, de uma família que sempre teve que lutar pra pagar as contas, mas que, sem ter consciência, possuía ainda assim privilégios sociais que me deram condição de me formar em uma universidade, nunca passar forme enquanto estive na casa de meus pais, nem nunca ter sido parada pela polícia pelo simples fato de minha pele ser colorida.

Foi na cultura popular que percebi que meu pai não é uma pessoa branca, e que meu avô menos ainda. Foi por causa da cultura popular, que fui levada a conhecer minhas raízes profundas, a buscas histórias de minhas avós indígenas e meus ancestrais árabes. Foi aqui que eu me entendi como ser híbrido, mestiço, misturado e que eu passei a ter um amor incontrolável por estas raízes. Foi aqui onde me tornei uma pessoa mais forte, mais preparada para educar minha filha, fora dos padrões da segregação e desvalorização de uma cultura em detrimento da outra. Eu sou filha de misturas. 

Posso estar enganada, mas sinto que, quando o povo brasileiro conectar-se com a força de sua cultura popular, aí sim poderá encontrar as respostas verdadeiras para a transformação do país. É na cultura popular onde o povo pode se encontrar, se re-conhecer, se entender, se respeitar em sua diversidade e diferença. E criar novas realidades para as gerações vindouras.

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Mo Maiê, Barra Grande de Itaparica, Março de 2017

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