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As mulheres e o Arco Musical

Em várias partes do continente africano, a cabaça é considerada como um dos instrumentos musicais mais antigos. 
Dizem que os instrumentos de sopro representam nossa mente, os percussivos, os membros e os de corda, o coração. Entretanto, na África, existe um quarto tipo de instrumento, os instrumentos corporais ou naturais, que representam o corpo inteiro. Assim são os arcos musicais ... 
Uma cabaça, um pedaço de arame e um pedaço de pau. Tão simples assim são os arcos musicais. De uns tempos pra cá venho me encantando profundamente por estes seres sonoros. Tanto por sua ressonância marcante e vibrante, que mexe lá no fundo da alma, quanto por suas conexões com a essência/resistência da força feminina no mundo. 
Foi através do mestre Cobra Mansa que vim a conhecer um pouco mais sobre. Quando ele mostrou um video de Madosini Mpahleni tocando seu "Umrhubhe" com a cabaça bem perto do coração, em um encontro de arcos musicais na África do Sul,  eu senti que nunca tinha visto um instrumento como aquele, que parecia que tinha sido feito pro corpo da mulher tocar. 
A Mestra Xhosa Madosini e seu Umrhubhe
Cobra Mansa e Madosini na África do Sul
Na África, dentre os tantos nomes e formas que recebe, estão os arcos chamados "mungongo" (da África Central), o "hungu" e o "m´bulumbumba" (de Angola), os "Ugubhu" e o "Uhadi" (África do Sul), entre outros. 
Madosini, uma mulher Xhosa, diz que "os arcos musicais foram uma revelação de Deus para fazerem as pessoas se sentirem mais felizes. Os Umrhubhe (arcos musicais) são um instrumento feito para mulheres. As garotas AmaXhosa crescem fazendo som, antes elas não iam à escola. Sua escola eram o arcos musicais". Madosini diz que "Os arcos não concordavam em serem seguidos por muitas pessoas já que eles tinham voz tranquila, mas podiam ser tocados junto com outros instrumentos" (...) Uma mulher analfabeta, que nunca frequentou a escola, durante a entrevista Madosini aponta para seu  Umrhubhe e diz "Eu frequentei essa escola aqui. Foi esse arco que me ensinou sobre a vida. Esse era o nosso divertimento. Ensinava boas maneiras para as pessoas, te dizia "É assim que você deve segurar seu arco Umrhubhe quando você se encontra com uma pessoa mais velha: Molo Tata, Molo Mama (Ei Pai, Ei Mãe). Não ignore quando seu pai ou sua mãe estiverem por perto"... "Eu mesma fiz este Umrhubhe. Eu mesma cortei essa madeira."
Em sua tese/pesquisa chamada "Entre Gungas e Kalungas", o angolano Aristóteles Kandimba afirma que "existe um fato que goza certa autoridade, sendo que quando se pesquisa o berimbau africano, seja ele de que nome, origem ou tamanho for: é impossível ignorar que o gênero feminino desempenha um papel extremamente considerável em relação aos arcos musicais". Segue seu texto dizendo que "a mulher africana, apesar de viver em constante normas estritas e rigorosas, entre elas as responsabilidades matriarcais, no último centenário foi a que mais fortificou a presença e a popularização do berimbau africano para a platéia continental e internacional".
Foi então que tomei conhecimento de que o que senti intuitivamente quando ouvi Madosini tocando seu arco era certeiro: os "arcos musicais são uma parte integral da contemplação feminina da poética emocional das relações entre indivíduos, sociedade, estado". 
O arco musical era comumente usado para adivinhações. "Nosinothi Dumiso adoeceu e ficou cega de um olho. Isso foi interpretado como uma chamada dos ancestrais para ela se tornar uma adivinha (thwasa). O jeito que ela encontrou de se tornar uma médium foi começar a tocar o "uhdi" (arco musical). 
A. Kandimba (professor Totti Angola) em seu texto "Entre Gungas e Kalungas: A ancestralidade do Berimbau" diz que "através do som melódico e hipnotizante do instrumento de uma corda só, orgulhosamente canta-se cantigas de centenas de anos atrás, transmitidas pelos seus antepassados. Canções que contam estórias das glórias dos seus povos, sobre a felicidade, a tristeza, o amor, o ódio, a paixão, a traição, casamento e cantigas infantis. Não somente a mulher é tradicionalmente considerada a base da família, mas também compõe, canta e constrói os próprios instrumentos que toca."
Assim, os arcos musicais vieram da África para o Brasil. Aqui, casou-se com o caxixi e transformou-se em berimbau.  
Celebrando o mês da mulher, inspirada pelo movimento essencial de capoeira angola que finalmente está rolando entre Ouro Preto e Mariana, aqui venho oferecer esse texto a todas as mulheres capoeiristas do mundo. 
Que possamos cada vez mais conhecer e nos aprofundarmos na matriz de nossas manifestações culturais. Que nos inspiremos cada vez mais a tocar o berimbau com consciência de sua força verdadeira. 
Que nos inspire a cuidar cada vez mais dessa nossa herança, é ancestralidade que vem sendo transmitida pela humanidade e é medicina pra todos nós.

Capoeira Angola e a Resistência da Mulher

Em março, em Ouro Preto vai rolar o evento "Capoeira Angola e a Resistência da Mulher. Venha ver o que é" na sede do Grupo Ginga do Congo Iúna, no Padre Faria. 

Na Bahia, o 1º Gingando por Autonomia: A narrativa da Princesa Aqualtune, no FICA Valença.


1º Gingando por autonomia
Em São Paulo, vai rolar um encontro do coletivo Mulheres FICA SP.


encontro do coletivo Mulheres FICA SP


           
  

  H U N G U

            

FONTES:
http://www.afribeat.com/education/music/easterncape/easterncape.htm
http://kandimbafilms.blogspot.com.br/

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