Pular para o conteúdo principal

Maalem Mahmoud Ghania & Pharoah Sanders: As sete cores do universo

              


Entre as melhores descobertas dos últimos dias está o encontro com um álbum surpreendente. Mesmo. The seven colours of the universe (As sete cores do universo), disco gravado em 1994, nascido do encontro entre o mestre Maalem Mahmoud Ghania (Marrocos) e o saxofonista Pharoah Sanders (USA).
Pharoah é um saxofonista de grande importância na história do Jazz. Tanto por ter participado de grupos históricos como o de John Coltrane, como por ser um dos principais personagens envolvidos na criação do Free Jazz, um gênero de renovação do jazz surgido nos fins da década de 50.
A palavra Maalem quer dizer "Mestre". Os Maalens Gnaouas são músicos curandeiros e têm uma função de extrema importância dentro dos rituais religiosos de sua etnia (que mesclam práticas animistas da África subsaariana com o sufismo islâmico). Para os gnaouas, as canções e os conhecimentos espirituais são passados de geração para geração através da oralidade e os Maalens costumam vir de famílias e aprender de seus pais ou parentes e assim foi com Maalem Mahmoud Ghania, que aprendeu a tocar o GUEMBRI (o baixo ancestral tocado pelos mestres gnaouas nos rituais de transe e cura) com seu pai, Boubker Ghania, assim como seus irmãos.
O saxofonista Pharoah foi ao Marrocos para conhecer pessoalmente o mestre Ghania e se aprofundar nas semelhanças entre o Jazz (Spiritual Music) e a música africana gnaoua.
E caiu no transe tocando. Em alguns temas o seu saxofone parece uma pessoa cantando ou chorando.  
Fiquei emocionada.
Senti o disco como uma homenagem muito especial às Lilas (Derdeba), os rituais de transe e cura dos Gnaouas. Uma percepção muito sutil da essência gnaoua numa linda transa com o jazz. Realmente os mestres conseguiram fazer essa fusão, bem feita. Sem contar que a essência da ritualística que envolve a música gnaoua está aí presente, o que pode até tornar o disco difícil de ser assimilado pelos ouvintes "ocidentais". Mas a presença do saxofone de Pharoah é muito marcante. Ele soube ser muito respeitoso com as bases e cantos gnaouas. Estão presentes as palmas, coros de homens e mulheres e os Krakrabs (as castanholas de ferro ancestrais).
As sete cores do Universo são as cores de uma Lila Gnaoua. Cada lila é referente a um Mlouk (que é como um Orixá para o candomblé). Cada canção traz uma cor e um Mlouk específico. O texto do encarte assim diz:

"Cada música ou peça é chamada pelos Gnawas de Mluk, termo que carrega o significado do espírito (masculino ou feminino) e seus correspondentes comportamentos (ou temperamentos), ritmo, melodia, cor e incenso. O Maleem circula pelas sete cores do transe, tocando as mluks em uma só cor até passar para a próxima. Ele só pode prosseguir à próxima quando encontra a mluk dentro daquela cor que induz o transe do adepto principal. Esse processo, passando pelas sete cores, dura aproximadamente oito horas, com a Lilla começando por volta das onze da noite às oito da manhã seguinte."

O que me deixou nostálgica e emocionada foi haver conhecido esse grande mestre Maalem em Essaouira, na última vez em que lá estive, em 2012... Fiquei encantada com os quadros expostos em uma casa de chás bem charmosa e me disseram que aquele senhor era o pintor dos quadros. E aquele senhor era o Mestre Ghania em pessoa, que nos presenteou com uma noite de cantos gnaouas... Depois de uns meses uma amiga me disse que ele tinha morrido. Forte! Aí está o quadro, que sempre me inspira. Na pintura uma Lila, onde se vê as mulheres esperando e descansando do transe, enquanto homens sentados na sala tocam para alguém ainda em transe, com as cores do Mlouk Bouderbala, que, inclusive, representa as sete cores.

quadro feito pelo Maalem Mouhamed Ghania
 
 
 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Guedra - O ritual das mulheres do "Povo Azul"

Guedra A palavra "Guedra" quer dizer "caldeirão" e também "aquela que faz ritual". Guedra é usado para nomear um ritual de transe do "Povo Azul" do deserto do Saara, que se estende desde a Mauritânia passando pelo Marrocos, até o Egito. Através da dança e da ritualística que a envolve, esse povo traça místicos símbolos espalhando amor e paz, agradecendo a terra, água, ar e fogo, abençoando todos os presentes entre pessoas e espíritos, com movimentos muito antigos e simbólicos. É uma dança ritual que, como o Zaar, tem a finalidade de afastar as doenças, o cansaço e os maus espíritos. Guedra é uma dança sagrada do "Povo do Véu" ou "Kel Tagilmus", conhecido como "Tuareg. Em árabe, "Guedra" é Também o nome de um pote para cozinhar, ou caldeirão, que os nômades carregam com eles por onde vão. Este pote recebia um revestimento de pele de animal, que o transformava em tambor. Somente as mulheres dançam "G

Os Quatro Ciclos do Dikenga

Dikenga Este texto sobre os ciclos do Cosmograma Bakongo Nasce da Essência da compreensão de mundo dos que falam uma dentre as línguas do tronco Níger-Kongo, em especial Do Povo Bakongo.  Na década de 90 o grande pensador congolês chamado Bunseki Fu Ki.Au veio  ao Brasil trazendo através de suas palavras e presença as bases cosmogônicas de seu povo, pensamentos que por muitos séculos foram extraviados ou escondidos por causa da colonização da África e das Américas e dos movimentos do tráfico negreiro. Fu Ki.Au veio nos ensinar filosofia da raíz de um dos principais povos que participaram da formação do povo brasileiro, devido aos fluxos da Diáspora. Transatlântica. Segundo Fu Ki.Au, “Kongo” refere-se a um grupo cultural, linguístico e histórico, Um Povo altamente tecnológico, Com Refinada e Profunda Concepção do Mundo e dos Multiversos. Sua Cosmopercepção Baseia-se Num Cosmograma Chamado Dikenga, Um Círculo Divido Em Quatro Quadrantes Correspondentes às Quatro Fases dos Movimentos

Ritmos do Candomblé Brasileiro

           Os ritmos do Candomblé (culto tradicional afro brasileiro) são aqueles usados para acompanhar as danças e canções das entidades (também chamadas de Orixás, Nkises, Voduns ou Caboclos, dependendo da "nação" a que pertencem). Ritmos de Diferentes Nações de Candomblés no Brasil São cerca de 28 ritmos entre as Nações (denominação referida à origem ancestral e o conjunto de seus rituais) de Ketu, Jeje e Angola . São executados, geralmente, através de 4 instrumentos: o Gã (sino), o Lé (tambor agudo), o Rumpi (tambor médio) e o  Rum (tambor grave responsável por fazer as variações). Os ritmos da Nação Angola são tocados com as mãos, enquanto que os de Ketu e Jeje são tocados com a utilização de baquetas chamadas Aquidavis (como são chamadas nas naçoões Ketu_Nagô). " Em candomblé a gente não chama "música". Música é um nome vulgar, todo mundo fala. É um...como se fosse um orô (reza) ...uma cantiga pro santo ".  A presença do ritmo n