Chove em salvador, chove há dias, sem parar... a chuva de fora já entra dentro. estamos aqui, dentro dessa louca babilônia. e aí me pergunto: o que faço aqui, dentre tantos lugares no mundo onde poderia estar, por que logo aqui, bem no centro da espiral babilônica?
porque aqui encontrei mestres e com tais mestres devo aprender algo antes de seguir caminho. babilônia pede por novas sementes, sementes de arte e amor, babilônia pede por carinho, e é aqui que se fortalece o interior do espírito, para que da terra que treme, da terra macia, da terra dos loucos, maltrapilhos, dos travestis, terra de infâmia, malandros, leprosos, dessa terra tão cansada, tão histórica, tão prostituída, possa fluir harmonia e equilíbrio.
então me lembrei do conto do griot e sua kora, que sempre nos serve para acalentar em momentos assim, com pouca luz...
"um caçador e seu cão procuravam algo para comer no meio da floresta quando se deparam com uma grande árvore. Forte, alta e de tronco muito largo. E ao pé da árvore estava recostado um estranho instrumento. Tinha uma grande cabaça com várias cordas estiradas sobre ela e de onde saía uma doce melodia que lhes prenderam a atenção.
O caçador, com receio, vai se aproximando do estranho instrumento paraouvir-lhe melhor os sons quando se aproxima um velho espírito disfarçado em homem. O caçador lhe pergunta:“Bom dia nobre senhor! Acaso sabes de quem é este estranho instrumento?
Acaso sabes o que é?”
O espírito disfarçado de homem lhe responde com naturalidade:
“Bom dia caçador! Sim sei... é uma kora e é minha! Queres ver como se
toca a kora ?
Entusiasmado, o caçador concorda e então, o estranho espírito disfarçado de homem tocou a kora com muita delicadeza e seu som penetrou no coração do jovem caçador que foi aprendendo como tocar aquele belo instrumento. Ao final da tarde, já tendo experimentado como tocar a kora, o espírito disfarçado de homem levantou-se e disse ao caçador:
“Leve para casa, toque-a e eu te mostrarei muito mais!”.
Mas, logo em seguida colocou uma condição para que o estranho homem seguisse lhe ensinando (o caçador não sabia se tratar de um espírito): eledeveria tocar durante o dia para a sua aldeia, mas, à noite ele seria visitado por um espírito em seus sonhos.
O caçador voltou à aldeia e tocou para a sua gente que ficou fascinada com a beleza das melodias que cantavam as façanhas dos ancestrais numa
“linguagem cheia de imagens e flores”. Sempre que chegavam visitantes e
estrangeiros para conhecer o lugarejo, o cantor (que já não caçava mais...) entoava suas canções com o magnífico instrumento.
O caçador não se esquecia do homem que encontrara no meio do caminho (ele não sabia que se tratava de um espírito) e à noite, em seus sonhos mais profundos, o homem lhe mostrava lugares nunca vistos, falava com os ancestrais que lhe contavam muitas histórias, aprendia a compor novas e velhas melodias e aprendia a construir outras kora.
Quando, numa certa noite, o estranho homem contou-lhe que, na origem dos dias, o espírito das coisas fez-se homem e se pôs a falar numa linguagem muito estranha, “cheia de imagens e de flores”. As pessoas da aldeia daquele homem não compreenderam aquela linguagem estranha e, considerado como louco, foi atirado ao mar. Foi, então que, um peixe devorou o homem.
Mais tarde, um jovem pescador conseguiu pescar aquele peixe que havido devorado o homem. Assou-o e o comeu satisfeito. Mas, com o passar do tempo o jovem pescador começou a falar numa linguagem misteriosa que ninguém, em sua vila, compreendia. As pessoas o apedrejaram e foi enterrado bem fundo na terra.
Com o passar dos anos, o vento que vinha do deserto foi descobrindo a cova em que o pescador foi enterrado e alguns restos de seu corpo foram parar no cuscuz (“kous-kous”) de um caçador. Logo em seguida, aquele caçador desavisado começou a narrar coisas desconhecidas de sua tribo, sem saber de onde vinham aquelas palavras estranhas cheias de imagens e flores de velhos tempos. Sua tribo, por achar perigoso o comportamento estranho daquele caçador, o exterminou reduzindo a pó o seu corpo e, sem perceber o erro, lançou o pó ao vento.
Foi quando um homem que tocava sua kora na floresta, afinando as cordas sobre a maravilhosa cabaça e extraindo as mais belas harmonias com seu instrumento, foi surpreendido por uma rajada empoeirada de vento e respirou os pequenos grãos de poeira que sobraram do corpo do caçador. Em seguida, o homem começou a cantar e a se acompanhar com a kora; e as canções e histórias, que saiam de seus lábios, cheias de imagens e flores, fizeram com que todos de sua aldeia, que o ouvissem, se pusessem a chorar: alguns de tristeza, outros de alegria, outros com intensa saudade. E todos, sem saber, ao certo, a razão disso. Por isso, deixaram-no viver. Pois é dessa forma que nasceu o griot.
Assim, o jeliya ou griot pode criar e, ao mesmo tempo, ser fiel à tradição. Grávido e orgulhoso de sua ancestralidade aprende na noite de seu espírito, dedilha memórias e canta nascentes.
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