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Árvore da Memória: Doudou Rose "Griô não é sangue, é osso"

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Doudou Rose: "Griô não é sangue, é osso"

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Estamos em Salvador da Bahia com o senegalês Doudou Rose, mestre Griô que vai partilhar um pouco de suas estórias conosco … é um pouco porque ele tem tantas estórias que não caberiam dentro de um livro só!


Doudou: Boa tarde, Mame Diarra … é verdade … eu tenho uma estória muito grande que não cabe mesmo num livro … uma estória muito grande por parte de meu pai. Eu sou neto de Sengh Sengh … O Que é Sengh Sengh? Sengh Sengh Faye é primeiro Griô de Dakar, no Senegal. Nasci numa família muito grande, uma família de Griô … Griôs são os contadores de historias de Africa … Se não era o Griô ninguém sabe o que é Africa. 

Nasceu minha família pra contar o que é Africa, o que é minha terra, o que é Senegal … Tô aqui no Brasil pra representar Senegal e a cultura africana, a cultura de Griô. 

Tem doze anos que trabalho aqui com a Escola Municipal através de Historia de Africa e história de percussão, porque sou percussionista. 

Na minha terra nós tocamos percussão não só pra brincadeira porque africano … a percussão dele é tudo dialeto, é tudo palavra. 

Não tocamos percussão só para fazer zoada ou para fazer som … Nossa percussão tem representação. Nossa percussão tem representação. E percussão é minha vida. É tudo! Eu sou uma pessoa que gosto muito de minha percussão.  Gosto muito de tocar porque eu tenho só isso na minha vida. É de minha família. É um dom que tá na minha família. É um dom que não acaba.  

Nós Griôs amamos muito de contar historia. A minha mãe é a primeira dançarina que botou a primeira pedra no Teatro Municipal de Senegal. 

Meu pai era o primeiro solista do Ballet Nacional de Senegal. Minha mãe dançava e meu pai tocava. Viajando juntos, eu nasceu. Nasceu, entrei no teatro com 15 anos, já profissional. Desde pequeno estou no Teatro Nacional. Viajei o mundo inteiro e agora tô no Brasil e vou fazer aqui 15 anos em Brasil. Falo português muito errado, mas … dá pra entender … 

Mo: E o que te trouxe ao Brasil?

Doudou: O que me trouxe ao Brasil era um sonho. O sonho que eu teve de pequeno, porque eu gostava muito de jogar futebol. Através de Pelé vi o Brasil. Eu gostava muito dele, na minha terra me falavam que eu parecia ele. De pequeno eu mandava cortar meu cabelo como o Pelé cortava o cabelo dele. O meu pai voyajava (viajava), minha mãe voyajava (viajava) … e trazia camisa do Brasil, equipamento de bola, me davam tudo … minhas amizades, todo mundo me dava bola para eu jogar … com sorte que Deus me deu, andava na rua e todo mundo me adorava "Ô Griô Dudu, venha cá, venha cá … toca aí para gente dançar!" 

Eu cantava, tocava, dançando, começava a ganhar trocado trabalhando no Teatro Nacional do Senegal, comecei tocando, comecei a viajar de doze anos com um grupo teatral.

Eu sou criado dentro da arte. Desde pequeno minha mãe me levava às repeticiones (ensaios), quando ela faz espetáculos para fora e meu pai era um cara muito conossuto (conhecido) na minha terra através sempre de percussão. 

E quando eu vim em Brasil para tocar em Percupan, um espetáculo que organizou aqui em Salvador de tudo músico famoso de tutti paizi (todos os países).  

Então eu vim com visto de três meses. 

Quando chegou aqui, terminou Percupam, três dias de Percupam, fez Percupam maravilhoso, bem pagado, faltava só pegar avião para voltar pra Senegal e eu digo "Eu vou ficar mais uma semana!".

Esse dia que eu ficar durou 15 anos! Conheci o Carlinhos Brown em Italia, em 90. Eu morava em Italia, ficou em Italia muitos anos e conheci Brown, conheci Banda de Pelo, conheci muita gente de Salvador … tutti brasileiro …  gostava da língua de brasileiro que ele falava … Quando eu vim pro Brasil pro Percupan, Brown me falou: "Mas venha cá, Doudou! Eu tenho uma escola. Por que não da aula aqui?". Eu digo: Tá bom. Ele fez uma contrato comigo pra dar aula.  Então eu comecei a dar aula na escola dele e pensei: "Ah! Eu não vou voltar não … minha vida vai ficar aqui mesmo, no Salvador"

Mo: E você toca o Sabar, né?

Doudou: Toco o Sabar! Na Africa o Sabar tem só no Senegal. É um instrumento Wolof senegalês. 

O Sabar é um instrumento muito completo. Quando você sabe tocar o Sabar, pode acompanhar todos os ritmos do mundo … 

O Sabar é uma mano, é outra mano que segura el baguete. Uma mão a baguete e a outra mão dá som de "Bahr", que aqui se fala "slap". Slap fechada, Slap aberta … opi … bass … guet … Sabar tem … Cada um tem seu sentimento pra tocar o instrumento do Sabar, é um instrumento que fala muito … Ele não é só pra pegar fap fap fap nao … 

Tem que saber falar sua língua pra poder tocar ele. 

Mo: E na tradição do Senegal o Sabar é tocado em algum ritual em especial?

Doudou: No ritual do Ndop, porque Ndop … aqui no Brasil eu vi que parece o Candomblé. No Senegal este ritual se chama Ndop. A minha família Sengh Sengh que toca Ndop no Senegal. Fazíamos Ndop, fazíamos sacrifício de matança. Passa sangue em cima dessa pessoa que tá sentindo mal, a família que não tá bem … 

Assim que no Senegal se cura: com Ndop. 

Mas Ndop não é uma coisa pra matar uma pessoa, pra fazer uma pessoa ficar maluco, não. Só para ajudar a vida da pessoa. Pra te dar boa sorte, pra você ficar bem na sua vida, você com sua família. Ndop não é religião, como aqui o candomblé que vem da Africa como religião. Porque se você ver … candomblé tem em Benin, Nigeria, Angola … Africa é um continente muito grande … Tem lugares de Africa que você vai falar de candomblé e ninguém sabe o que é candomblé. Porque continente africano tem 54 países … Graças a deus estou aqui e aprendi o toque de candomblé daqui. Junto com minha experiência que eu tenho na minha terra. 

Mo: E no Senegal o Ndop convive com o Islam em paz…

Doudou: E vive em tranquilidade porque é uma coisa de sacrifício. Não é uma coisa de religião. É uma coisa que Deus dá. Antigamente no tempo de minha bisabisavô, quando ele nasceu tem uma reza, tem Hamba (que aqui é Casa de Santo). Que é Hamba? Hamba pode botar um tronco de pilão, bota um vaso, pode botar água, um pedaço de madeira aqui … se a pessoa toma esse banho, vai abrir seu caminho, ficar com a cabeça tranquila. E não é uma coisa de religião. É uma coisa pra ajudar, que Deus dá a cada um de nos. Se pode jogar búzios para saber se uma pessoa está doente, porquê que ela está doente … É Deus quem sabe, só ele quem sabe …


Mo: Na Bahia você percebe muitas coisas similares ao Senegal? 

Doudou: Aqui tem cultura de africano, porque antigamente na época da escravidão, saíram tirando africanos da Africa … Era tudo forçado. Você não escolhia. E a última fronteira que saíam os navios era o Senegal. Senegal era a base, a Ilha de Goré. Os traficantes pegavam africanos de várias partes e levavam todo mundo pro Senegal, pra Ilha de Gore. 

Uma Ilha que tem 1.200 casas. Tem só um Portão. Você Vai Sem Voltar. 

Quando o navio levava os escravo, aonde levava os escravos? No Brasil. Em que lugar de Brasil? Aqui no Salvador, no Mercado Modelo. Aí era Mercado pra vender os africanos. 

Escravo fazia comida. Se você vê aqui na Bahia a comida baiana, o tempero baiano, a comida gostosa que o baiano faz, você não sente falta de Africa, não … Porque toda comida que eu quero comer da minha terra, a receita dela tem aqui. 

Aqui no Brasil, todo mundo toca toque de candomblé que africano trouxe pra aqui. O ritmo tal, o ritmo tal, o ritmo de tal santo, de tal santo … mas não sabe o que significa esse toque que está tocando, porque cada toque é uma palavra. Tem palavra boa, tem palavra ruim … esse que é o toque do tambor. 

Nós, Griôs em Senegal, cada sobrenome tem seu toque. Quando eu pego meu tambor, se uma pessoa tá tocando e eu tô longe … se ele tá a 50 km de distância, se eu toco pra ele, ele sente dentro do corpo dele que eu tô chamando ele. Nós, Griôs, temos isso. Meu pai tá em casa, pega tambor dele e precisa falar comigo … ele tá tocando e eu … meu coração tá batendo muito forte, pulando, pulando … porque meu Pai tá me chamando. Mas dentro de nós, sabe? Eu sinto "Tenho que voltar pra ajudar em casa" … 

Eu nasci com o conhecimento de Sabar. Fui filho de Doudou Ndya Rose, grande percussionista do mundo. Meu pai … se todo mundo fala de percussão, de percussão africana … é graças a ele. Faleceu Quando ele teve 87 anos. 4 anos atras. Um grande percussionista, um grande pai de família. Meus irmãos que eu tenho, todo mundo é percussionista. Todo lugar do mundo que você vai … ate na India … tem um de minha família. Quando você abre internet e busca família Rose, família Sengh Sengh é família de Doudou. A casa não acaba. Sempre cresce … 

Na minha terra, quando eu toco meu tambor, meu bolso tá cheio de grana, de dinheiro… Porque eu vou falar o nome dela, que tá aqui sentada, ela vai sair e vai me dar um presente. Vou ganhar um cavalo, vou ganhar arroz, vou ganhar ouro, vou ganhar roupa, vou ganhar dinheiro. 

Eu dentro de minha casa se eu não tenho nada nada nada … eu pego meu tambor … e duas, três casa que eu toco, já posso voltar pra casa. Porque eu tenho pra botar comida em casa. 

Nós, Griôs, somos nobres, somos pessoas muito respeitadas em Africa. Imagine Senegal, que antigamente ver o homem dançar era problema … eles chamavam ele de veado. Mas agora o homem tomou todas as danças do Senegal. Através do Griô. 

Quando uma mulher com um homem se casa, todo mundo escuta o toque do tambor … "E esse tambor?" "É na casa de fulano" "Fulano vai se casar?" Assim é a mensagem de Tambor. 

Ela casa, primeiro dia que ela vai com o marido, 4 horas de manhã, 5 horas de manhã, é o Tambor Tchouro que acorda todo mundo. Tambor Tchouro. Como aqui chamam o Rum. É um tambor base. Ele toca toca toca e em mais de 50 km você vai sentir seu toque "Ô Meu Deus do Céu! Fulano já pegou a esposa dele!". 

Quando tem Guerra, este tambor toca. Todo mundo sabe o ritmo de Guerra, é o ritmo de galope de cavalo. Galope de Cavalo, tem gente que chama de Tuss. 

O tambor está batendo pra organizar o lugar que você passa, o lugar que você não passa … tudo o tambor é que sabe … O Tambor não é só pra tocar … porque você tem que saber que linguagem que ele tem! 

Aqui as pessoas tem a raíz de tocar … porque o tambor daqui vem de Africa … mas as pessoas lançam a mensagem, mas não sabem que mensagem que estão lançando … 

No Senegal você tem que saber que mensagem é para o Leão, que mensagem é pra Hiena, que mensagem é pra Cabra, que mensagem é pro Boi e pro Carneiro. Tem que saber… Porque nós tocamos para falar na boca junto com o tambor. 

Assim que o Griô ensina o tambor, com a linguagem dele. Cada mensagem que o seu Tambor passa, você com sua mão tá sentindo que palavra é essa que ele fala ...    

Flor: Ô tio … você fala toda hora do seu tambor … mas cadê ele agora?

Doudou: Ele tá em casa … porque eu não posso levar ele pra todo lado, porque ele é muito pesado. O meu tambor tem um tronco. É um tambor, mas é um tronco ao mesmo tempo. Uma planta. E essa planta pode chegar a 25 metros … Então a gente pega esse tronco e cava ele, tudo feito na mão … e esse tronco que a gente toca … se chama Sabar!

Mo: Doudou ... que mensagem você deixa pro mundo?

Doudou: oh… que lindo isso! Se for falar de mensagem, diz pro mundo que eu não vou mais sair daqui não… porque eu sou uma pessoa que tenho um coração muito aberto. Eu quero que todo mundo se junte! Eu quero é Paz pro mundo! Eu tô contra violência! Eu quero sempre o bem pra todo mundo! Meu problema é esse … Eu quero sempre todo mundo bem, não só pra mim e pra minha família! Eu quero sempre o Bem pra todo mundo!  
  

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Salvador, Bahia

Junho de 2019

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