Pular para o conteúdo principal

Árvore da Memória: Do outro lado de cá, com Malungo Joab Jo


Assim foi que Joab falou: "Tentam diasporar nosso corpo, mas nosso corpo não pode ser diasporado. O Corpo não é o corpo. Só não existe. O pinote não é só pinote. O pinote é o pinote. A capoeira não é só pinote. Não é só pulo. A capoeira pensa."

Joab Jo Malungo Jundiá . registro de registro de Christina Shung

Meu nome é Joab Jo Malungo Jundiá. A capoeira faz parte da minha vida. Meu primeiro contato com a capoeira foi com 12 anos, mas aos 15 foi quando eu comecei a treinar realmente. E desde lá eu nunca parei. Percorri vários caminhos … caminhos que eu preferi seguir… caminhos que eu preferi voltar e pegar outro caminhos, mas todos eles, mesmo os caminhos que eu voltei, foram me dando bagagem para eu hoje estar aqui.

Então é isso ... minha vida é Capoeira …. Gostaria de dizer isso sem ressalva, mas talvez infelizmente ou não… eu não consigo dizer isso sem ressalva, dizer eu sou Capoeira. a gente tem que acrescentar uma série de coisas e tal … mas é isso, porque a capoeira me possibilita uma série de coisas que pra mim continua Capoeira. 

Desde pensar o mundo, sentir o mundo… pensar, tocar, escrever, minha relação com a minha família.

Eu tive 8 filhos e 7 são vivos. Um nasceu e chegou retornando … e todos eles fazem capoeira. E eles não lembram quando iniciaram a capoeira, porque foi desde muito pequeno. Eles são duas mulheres e cinco homens.

É isso … eu não posso falar de mim sem falar de meus filhos e sem falar dos meus avôs, meu pai, minha mãe.

Eu sou natural de Nazaré da Mata, cidade aqui da zona da mata de Pernambuco. Meu pai é natural de um engenho, é uma região de canavial, de cana de açúcar, tem muitos engenhos … e meu pai é natural do engenho Joá e minha mãe tá ligada ao Engenho Kutumguba, minha família também tá ligada a outro engenho chamado Engenho Olho D’água. 

Mas é isso… isso são minhas referências. Eu sou de uma região do Maracatu, né? Que hoje se usa esse termo Maracatu. Toda região é de maracatu. 

Eu não brinco maracatu desde pequeno, porque houve uma ruptura aí, né? Porque meu pai e minha mãe se converteram à Igreja Batista, então há um apagamento do que a família …. mas meu avô era caboclo, tenho um irmão mais velho que foi caboclo. Meus tios sempre tiveram envolvidos com o maracatu. E isso aqui é uma coisa muito comum…. uma banalidade.

Danço desde pequeno, danço muito.

Sou um caboclo. Eu prefiro não me chamar de Caboclo de Lança. Eu digo que eu sou Caboclo. Até porque aquilo ali é uma guiada. O nome é guiada. Não é lança. Aos poucos foi ficando lança, lança…  mas o nome é guiada.

Mo: Como toda sua experiência de vida, sua linhagem ancestral, o que vc aprende com seus filhos, como é que essa corporeidade tão especifica… como você trás tudo isso para sua capoeira?

Malungo: Eu não trago nada disso para a capoeira. Porque tudo já tá no meu corpo. É o meu corpo. Eu sou da Zona da Mata e vivi no Recife por muitos anos e sou de frevo, sou o que o pessoal chama de passista. Eu não me refiro muito como passista, mas faço frevo, danço frevo e a relação do frevo com a capoeira é muito presente. E sou caboclo de maracatu. Sambo maracatu. E isso é que já é em mim. Então quando eu jogo capoeira, tá tudo lá, tá tudo em mim. 

Não é uma coisa que eu faço e eu trago para me influenciar. Não é uma influência. É como se eu mesmo não posso me influenciar. Eu sou eu. Já está ali. É muito comum isso… uma coisa que eu trago pra capoeira, essa munganga, essa mandinga, né? Esses trejeitos, esses pantins que eu faço na capoeira e que por onde eu ando chama a atenção, as pessoas notam… principalmente as pessoas que fazem a partir da Bahia a capoeira chamada de Capoeira Angola. Mas não é que traga para a capoeira. Eu já sou isso, né?

Mo: Parece que hoje em dia tem um padrão de jogo, de movimentos quase mecânicos, né? E quando uma pessoa se depara com o seu jogo é muito impactante. Eu pelo menos, toda a vez que eu te vejo jogar me marca profundamente. A sua corporeidade está muito livre mas você esta ali com total respeito com a essência da capoeira. Você percebe que hoje em dia as pessoas estão jogando de uma maneira muito padronizada?

Malungo: Tá tudo padronizado. Tudo padronizado. Às vezes até a maneira da gente dizer que tá tudo padronizado é uma padronização. A gente diz isso, mas quando a gente age, a gente age a partir de determinado padrão, mesmo para considerar o padrão que já tá enquadrado ali. 

Então, assim é o mundo, são as ciladas, essas armadilhas que tem e a capoeira não escapa disso. 
Agora, a capoeira também é um jogo de cilada, é um jogo de malícia e tal … então, eu me vejo possível a dar uma balançada nessa coisa da padronização … dar uma padronizada no sentido de desmanchar algo que seja padronizado. 

E isso que eu tô dizendo agora é racional. Mas quando você joga não há muita separação entre o racional e o que você sente na Capoeira, mas o coração é muito forte, então, quer queira quer não, vai rompendo com determinados padrões … e eu gosto disso… não que a capoeira que eu faça… essa corporeidade que eu apresento ali jogando a capoeira … o objetivo dela seja despadronizar… ela não tem objetivo. Porque seria já uma coisa muito política, muito racional “ah… eu tô fazendo dessa forma para despadronizar…” então automaticamente, aquilo viraria um padrão… e não é isso. E eu não tô dizendo que a gente não deva despadronizar… claro que a gente deve… claro que a gente deve perceber que essa coisa do padrão do jeito único de fazer a coisa - e nesse caso a capoeira - é uma coisa nociva para as nossas relações humanas, porque cada pessoa é diferente da outra, dentro de uma própria família, é diferente a relação que se tem com cada um. Na capoeira também. A vida e a capoeira … a capoeira é um reflexo da vida… então assim… quando eu jogo daquele jeito não é pautado em despadronizar … eu jogo porque eu jogo daquele jeito. Eu não me deixo ser padronizado.

A capoeira não vai de encontro, ela vai ao encontro dessa coisa que tá em todo canto. Eu converso com pessoas de outras brincadeiras e você vê que o bojo de relação tem vários furos, é um bojo furado com vários furos. 

São infinitos furos que dá pra gente ir ao encontro e se relacionar de uma maneira peculiar, de uma maneira individual, característica, que cada um já é. Um pé de manga nunca é igual outro pé de manga. 

Um Baobá não é um pé de jurema… tudo é diferente, por mais que sejam parecidos, mas cada coisa é diferente da outra. Então isso é uma coisa que é, não é algo racional.

A minha barca é a capoeira. Eu não vejo muita diferença com outros portos que eu chego. A minha barca é a Kalunga. A Kalunga é as águas e a Kalunga também é a barca. Então é desse princípio, desse bojo de relação que eu tô falando. Então isso pra mim é muito forte quando você faz uma dança luta como a capoeira. Eu acho ate que a gente minimiza quando a gente diz isso. É uma dança luta. Você dança pra lutar. Bota a cabeça no chão e ri e tira onda e tem a picardia toda ... e tem sua peculiaridade. É uma dança, embora a sambada do caboclo seja uma coisa mais dura aparentemente, mas cada caboclo tem sua peculiaridade, tem sua característica e também é uma dança luta. Mesmo com o cacete na mão, batendo o cacete, mesmo quando brincam duas pessoas, dois caboclos sem cacete, é uma dança luta. 

Eu creio que só por esse fato de ser uma dança luta, o bojo de relação que eu falei antes, brilha mais
 ainda. Porque mostra e não exclui as contradições.  E não excluir as contradições, talvez se a gente forçar um pouquinho seja não excluir as coisas. Uma dança luta não da pra sair por aí excluindo. 

Até porque luta gosta de incluir pra lutar, né? Com quem quer que seja. E uma dança você dança pra você, mas dança pros outros também. Então isso para mim fortalece esse bojo de relações. Essa coisa da dança luta, que eu vejo na capoeira e também na sambada de cabôco, uma dança luta. E a relação que eu vejo é essa. A barca da Kalunga. A Kalunga é a barca e a Kalunga é o mar. Kalunga é a boneca. Kalunga são os ancestrais. Kalunga é companheiro. Kalunga é Malungo também. Quando se tá trabalhando aqui na região, por exemplo: Kalunga de caminhão. Kalunga de caminhão é o cara que carrega e descarrega o caminhão. O companheiro, o malungo. Ele não é só, tem outros carregando com ele também. Então para mim, esse bojo de relação é também isso que eu chamo das águas da Kalunga, da barca da Kalunga, dos amigos, companheiros da Kalunga, dos ancestrais da Kalunga. Eu sou assim. Eu sinto dessa forma. Então o jogo da capoeira para mim é isso: não tá dissociado nem tá associado. Não tá dissociado nem associado. Ele é aquilo mesmo. Não é o meu jogo da capoeira que tá associado à sambada do caboclo, do maracatu de caboclo. Não tá associada, nem tá desassociada, ela é daquele jeito. Eu não me associo a essas coisas. Essas coisas são. Não é esforço. É porque é assim.

Mo: Malungo, como você vive, quando você trás essa coisa do é e não é, do ser e não ser, do estar mas não estar … do existir sem ser criado … isso tudo mexe muito com a gente, provoca a gente a quebrar muita coisa, mesmo que não seja essa sua finalidade…


Joab: O padrão se quebra … eu acho isso mesmo … o padrão se quebra. Se quebra sem a gente fazer muito esforço nem sacrifício. Eu não to dizendo que se quebra do nada. você se movimenta do jeito que você é. Por exemplo: uma pessoa que é capoeira pode ser atingida por varias forcas adversas, demandas, momentos ruim na vida, seja na relação com as pessoas, seja na relação comigo mesmo, seja na relação com as arvores, os animais … tudo … com as crianças, com as mulheres, com esse mundo, com o racismo, o machismo … com tudo ai … com essa violência policial, com essa escola que cumpre seu papel direitinho … a policia cumpre seu papel direitinho … eu não vou exigir que a policia cumpra outro papel, porque o papel dela é esse… eu nem exijo que a escola cumpra outro papel, porque me parece que o papel da escola é esse… mas eu sou atingido por tudo isso. sou atingido. minha família é atingida. minhas filhas, minha mulher é atingida pelo machismo. nos somos atingidos pelo racismo. nos somos atingidos pela violência policial. nos somos atingidos por essa escola. nos somos atingidos pelo cristianismo. eu não to dizendo que a gente é atingido pelo cristianismo ruim, não. To dizendo que a gente é atingido de maneira nociva, contundente por todas essas coisas. Agora, como eu sou capoeira, quando eu reajo a isso, é diferente de um cabra que tá totalmente integrada a tudo isso. E quando eu digo integrada não é apenas não ligar pra essas mazelas, essas coisas ruim que tem no mundo. Mas eu como capoeira, eu reajo diferente. eu não to integrado a isso. Então a reação a tudo isso é diferente. Isso é uma característica do meu jogo. E como é que se vê tudo isso que eu to falando? Quando eu to jogando! Quando eu to jogando… Não é de outra maneira, não é de outro jeito.  Não é eu falando aqui. Mas é eu falando aqui também. Mas quando eu to jogando, isso fica mais claro, visível … tá mais sentido… então como eu reajo a tudo isso … a corporeidade … o meu corpo é isso. Não é esforço. Esse padrão que tá aí quer prender a gente. A gente se movimenta, não para fugir do padrão. Isso é uma mandinga. Eu não me movimento pra fugir do padrão, que padroniza, que aprisiona todo mundo. Não … eu não me movimento pra isso. Eu me movimento porque eu tô vivo. Porque eu sou vivo. Porque se eu digo que me movimento pra não deixar o padrão me prender, toda minha referencia de movimento é a partir daquela fuga. O padrão tá no centro… e não é isso. Eu me movimento porque eu me movimento. E se a gente não tiver esse enxergamento, a gente mesmo sendo contra uma verdade, a verdade única … a gente vai tá fortalecendo ela. Porque se eu me movimento porque aquele padrão tenta me aprisionar … outra pessoa que é diferente de mim se movimenta fugindo daquele padrão, outra pessoa se movimenta também fugindo daquele padrão … seja na capoeira, no maracatu, no jongo, no bumba meu boi, na poesia, na dança, nas artes, na educação, na medicina, na historia, na espiritualidade e tudo … são pessoas diferentes e são ações diferentes. Se essas pessoas não partirem de si próprias, a partir das suas ações, que são diferentes de outras ações, essa pessoa que quer fugir do padrão, que aprisiona, que prende , aí padroniza … eu me movimento porque eu me movimento. porque eu to vivo. e quando eu me movimento porque eu tô vivo, sou vivo … eu vou me movimentar do jeito que eu to vivo, que eu sou vivo. Não é pra fugir do padrão. Agora, o padrão se quebra. se quebra mesmo. E a capoeira possibilitou pra mim esse enxergamento. Hoje eu enxergo dessa maneira, amanhã talvez eu enxergue diferente, não sei … de outras formas … eu enxergo assim, eu sinto dessa forma.
.


Joab Joó Malungo e Helena Tenderini . registro de Christina Shung
.
Do outro Lado de Cá. Filosofia Africana em Terra de Cabôco
Tracunhaém, Pernambuco
Sítio Malokambo
Março de 2018

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Guedra - O ritual das mulheres do "Povo Azul"

Guedra A palavra "Guedra" quer dizer "caldeirão" e também "aquela que faz ritual". Guedra é usado para nomear um ritual de transe do "Povo Azul" do deserto do Saara, que se estende desde a Mauritânia passando pelo Marrocos, até o Egito. Através da dança e da ritualística que a envolve, esse povo traça místicos símbolos espalhando amor e paz, agradecendo a terra, água, ar e fogo, abençoando todos os presentes entre pessoas e espíritos, com movimentos muito antigos e simbólicos. É uma dança ritual que, como o Zaar, tem a finalidade de afastar as doenças, o cansaço e os maus espíritos. Guedra é uma dança sagrada do "Povo do Véu" ou "Kel Tagilmus", conhecido como "Tuareg. Em árabe, "Guedra" é Também o nome de um pote para cozinhar, ou caldeirão, que os nômades carregam com eles por onde vão. Este pote recebia um revestimento de pele de animal, que o transformava em tambor. Somente as mulheres dançam "G

Os Quatro Ciclos do Dikenga

Dikenga Este texto sobre os ciclos do Cosmograma Bakongo Nasce da Essência da compreensão de mundo dos que falam uma dentre as línguas do tronco Níger-Kongo, em especial Do Povo Bakongo.  Na década de 90 o grande pensador congolês chamado Bunseki Fu Ki.Au veio  ao Brasil trazendo através de suas palavras e presença as bases cosmogônicas de seu povo, pensamentos que por muitos séculos foram extraviados ou escondidos por causa da colonização da África e das Américas e dos movimentos do tráfico negreiro. Fu Ki.Au veio nos ensinar filosofia da raíz de um dos principais povos que participaram da formação do povo brasileiro, devido aos fluxos da Diáspora. Transatlântica. Segundo Fu Ki.Au, “Kongo” refere-se a um grupo cultural, linguístico e histórico, Um Povo altamente tecnológico, Com Refinada e Profunda Concepção do Mundo e dos Multiversos. Sua Cosmopercepção Baseia-se Num Cosmograma Chamado Dikenga, Um Círculo Divido Em Quatro Quadrantes Correspondentes às Quatro Fases dos Movimentos

Ritmos do Candomblé Brasileiro

           Os ritmos do Candomblé (culto tradicional afro brasileiro) são aqueles usados para acompanhar as danças e canções das entidades (também chamadas de Orixás, Nkises, Voduns ou Caboclos, dependendo da "nação" a que pertencem). Ritmos de Diferentes Nações de Candomblés no Brasil São cerca de 28 ritmos entre as Nações (denominação referida à origem ancestral e o conjunto de seus rituais) de Ketu, Jeje e Angola . São executados, geralmente, através de 4 instrumentos: o Gã (sino), o Lé (tambor agudo), o Rumpi (tambor médio) e o  Rum (tambor grave responsável por fazer as variações). Os ritmos da Nação Angola são tocados com as mãos, enquanto que os de Ketu e Jeje são tocados com a utilização de baquetas chamadas Aquidavis (como são chamadas nas naçoões Ketu_Nagô). " Em candomblé a gente não chama "música". Música é um nome vulgar, todo mundo fala. É um...como se fosse um orô (reza) ...uma cantiga pro santo ".  A presença do ritmo n