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Candombe Mineiro

Uma das manifestações musicais mais ancestrais de Minas Gerais sobrevive na comunidade do Açude, em meio às montanhas da Serra do Cipó.



Em novembro de 2004, o presidente Lula premiou com a medalha da Ordem do Mérito Cultural um grupo de moradores de um remanescente de quilombo localizado na Serra do Cipó, região distante 130 quilômetros de Belo Horizonte. Descendentes de escravos, a comunidade do Povo do Açude, como é conhecida essa gente, preserva até hoje um ritual sagrado de seus ancestrais: o candombe, uma tradição marcada pelo ritmo dos tambus, tambores moldados na madeira pelos escravizados.

Assim, o secular candombe sobrevive ao tempo na serra do Cipó. E ganhou o respeito de todos. “Meus avós me pediram para nunca deixar morrer a tradição”, diz a simpática Maria das Mercês Santos, 66 anos de idade, neta de escravos. Com a ajuda das irmãs Maria Geralda, 68 anos, e Vilma Zeferino, 69 anos, dona Mercês não permite que os tambus se calem. Os ancestrais das três matriarcas vieram do Congo, mais de 200 anos atrás. Na bagagem trouxeram a cultura africana. Os escravos chegaram à região para trabalhar nas lavouras da fazenda Cipó Velho, localizada a dois quilômetros de onde hoje está a comunidade do Açude.

O candombe não tem data certa para ser celebrado na comunidade do Açude. “Só não tem quando chove, porque os tambus precisam ser afinados na fogueira”, diz dona Mercês. Eles ficam à beira do fogo desde o início da noite da festa, para que o couro estique a ponto de ganhar o timbre certo. Manifestação folclórica mais primitiva de Minas Gerais, o candombe tem origem no congado e é considerado a principal das oito guardas dessa manifestação vinda da África para reverenciar, com danças e batuques, Nossa Senhora do Rosário.

A principal história relacionada ao candombe na serra do Cipó conta que os batuques dos escravos aconteciam sempre no início da noite, depois do trabalho na lavoura. Os negros da fazenda Cipó Velho reuniam-se para dançar ao som dos tambus, mesmo sabendo que não era do agrado do senhor branco.

Certo dia, irritado com a algazarra vinda da senzala, o senhor ordenou ao capataz que acabasse com a festa, queimando os tambus. Mas a fumaça exalada pelos tambores penetrou casa-grande adentro, perseguindo o dono da fazenda durante horas. Quase sufocado, ele imaginou tratar-se de uma maldição encomendada pelos negros. Assustado, mandou que os escravos construíssem novos tambores, por acreditar que só dessa maneira o feitiço seria anulado. Assim foi feito e a mandinga se desvaneceu.
O episódio teria acontecido já ao final do século XIX, poucos anos antes do fim da escravidão no Brasil. Os três centenários tambus talhados em tronco de saboeira, árvore do cerrado mineiro, ainda estão lá, ditando o ritmo do candombe do Povo do Açude. Além de uma caixa batuqueira incorporada mais tarde pelos descendentes dos escravos, em lugar da puíta, os três tambus de tamanhos e tonalidades sonoras distintas são os únicos instrumentos permitidos na celebração.

Ao contrário das outras sete guardas do congado – moçambique, congo, catopés, marujos, cavaleiros de São Jorge, vilão e caboclinhos –, os participantes do candombe não fazem uso de qualquer vestimenta apropriada. “O uniforme do candombe é o respeito”, diz dona Mercês. Ela faz questão de manter assim a celebração, como faziam seus parentes escravos: “Não vamos mudar nada, não vamos usar uniforme, não vai ter rainha nem rei, como tem nas outras guardas. Nosso rei é o candombe e nossa rainha é Nossa Senhora do Rosário”, decreta.

A manifestação tem uma força que contagia pela espontaneidade. Logo depois da reza em homenagem a Nossa Senhora do Rosário, segue-se uma pequena procissão até o terreiro onde estão repousados os tambus ao lado da fogueira. De repente, alguém atravessa o terreiro fantasiado de boi, perseguindo e assustando as pessoas com sua correria.
Meia hora mais tarde, já afinados, os tambus são empunhados por três homens da comunidade, e o candombe tem início para varar a madrugada. Um círculo humano se forma ao redor dos batuqueiros, e um candombeiro se apresenta ao centro da roda para cantar. Os versos são curtos, disparados em tom de desafio. Os temas variam da louvação religiosa a amores e ocorrências do dia-a-dia. Muitas vezes, o candombeiro improvisa seu canto e a roda de participantes responde, em coro, com versos tradicionais do tempo dos escravos.

Dançando e girando o corpo freneticamente, como que a estar em transe, o candombeiro cede a vez para outro participante entrar na roda. Qualquer pessoa, de qualquer idade, é sempre bem-vinda a participar. A festa segue até a madrugada, e são servidos bolo de fubá e broas de milho para os convidados. Mas o combustível dos candombeiros é mesmo a cachaça, acompanhada de biscoito de polvilho. “Serve para relaxar, mas não é obrigatório”, diz dona Mercês.
Houve época em que se podia ouvir os cantos em latim e em dialetos africanos. “Freqüentei candombes cantados na língua banto, aqui na serra do Cipó, mas essa tradição se perdeu com a história oral, ao longo dos anos”, revela Oswaldo Machado, pai da cantora Marina Machado e um estudioso da manifestação originária da África.

Oswaldo Machado sempre acompanhara e incentivara a preservação do candombe na região. “A intenção é revitalizar uma tradição que estava desaparecendo. Até mesmo os tambus não tinham guardiões, um deles quase se perdeu”, diz Machado.

Hoje os três tambores, símbolos do candombe, ficam sob a proteção e responsabilidade de dona Mercês e sua família.

Também a batida e o ritmo originais da manifestação têm sido motivo de preocupação. “Há um cuidado muito grande em preservar a forma como os escravos tocavam os tambus, para que ela não se perca no tempo, nem se deixe influenciar pelos modismos”, diz o advogado. Para Machado, a manutenção das características do candombe só tem sido possível graças à união do povo do Açude. “É uma comunidade quase tribal de pessoas simples que ainda se sustentam com o trabalho na roça. Apesar da precariedade em que vivem, todos ali são solidários, receptivos e felizes.”

A nova geração do Açude sabe da importância dessa tradição. Florisbela Aparecida dos Santos, de 23 anos, é uma das mais empenhadas em preservar e difundir o camdombe. Filha de dona Mercês, Flor, como é conhecida, luta bravamente para divulgar o legado deixado por seus ancestrais. “Tempos atrás, os turistas que visitavam o parque nacional vinham ver o candombe e nos desrespeitavam dentro de nossa própria casa, caçoando e gritando frases maldosas, carregadas de preconceito”, diz Flor.

Hoje, em dias de candombe, centenas de pessoas de várias regiões de Minas Gerais – em especial jovens estudantes de Belo Horizonte – invadem a comunidade do Povo do Açude para participar ativamente da festa, a começar pelos preparativos. “O resgate de nossa cultura é o principal instrumento para fazer com que todos nos respeitem”.

A RAINHA DOS TAMBORES
Rainha do Sincretismo Religioso, Nossa Senhora do Rosário preferiu o batuque
africano à missa portuguesa.

Desde sua origem, o congado está relacionado ao culto a santos católicos como Nossa Senhora do Rosário, Santa Ifigênia e São Benedito. Em Minas Gerais, por exemplo, há registros de celebrações a Nossa Senhora do Rosário de 1705.

Esses santos eram cultuados na mesma ocasião em que os escravizados nomeavam “juízes” e “reis do Congo” entre eles próprios, que servissem de interlocutores com os senhores de engenho, e nos mesmos dias em que os brancos comemoravam as cerimônias católicas. Era uma maneira dissimulada de louvar seus orixás: fazendo uma associação com os santos dos portugueses.

No Brasil, Nossa Senhora do Rosário pode ser considerada a rainha desse sincretismo religioso e também do candombe, o pai de todas as guardas do congado.

Uma lenda africana diz que a imagem da santa apareceu pela primeira vez no mar, perto de uma praia. Colonizadores portugueses tentaram retirá-la da água, sem sucesso.

Grandes embarcações foram usadas para o resgate, missas foram rezadas, mas a santa não saía da água. Então, do tronco de árvores os escravos escavaram três tambores que foram colocados em um oratório feito de sapê, na beira da praia. Cantaram, dançaram, rezaram com muita fé, atraindo a santa.

Nesse momento, os portugueses a tomaram dos negros e a glorificaram no altar de uma capela feita toda em ouro, onde celebraram missas. No dia seguinte a santa havia voltado para o mar. Os negros novamente montaram seu humilde oratório e voltaram a soar seus tambores. E mais uma vez a santa voltou à terra, agora para ficar. Desde então, os três tambores de madeira e couro – os tambus do candombe – são considerados sagrados para os negros devotos de Nossa Senhora do Rosário.

FONTE:
Reportagem extraida da Revista Raiz. Texto de Afonso Capelas Jr.

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